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A utopia e a Justiça do Trabalho
Cezar Britto
29 de novembro de 2018

Aguardava, pacientemente, o início da minha audiência na 18ª Vara da Justiça do Trabalho de Brasília, quando, de supetão, escutei uma voz que brotava dos microfones plantados nos corredores do prédio judicial. Era o serventuário da vara convocando a “Utopia” para comparecer à sala de audiência. Cumpria ele a sua função de apregoar as partes, avisando-as do início da sessão de julgamento.

Curioso, fiquei no aguardo.

Afinal, pensei eu, como entraria a “Utopia” na Justiça do Trabalho? Estaria em frangalhos após a transformação da CLT em Consolidação das Lesões Trabalhistas? Estaria deprimida após o Supremo Tribunal Federal ter terceirizado o Tribunal Superior do Trabalho e liberado a classe trabalhadora para ser apropriada, como “coisa”, pela ganância do Mercado? Estaria disposta a propor algum acordo judicial ou se defender do engano corporificado em uma injusta ação trabalhista? Estaria receosa em ser extinta pelo novo governante de plantão e sua turma privatista? Conservaria, ainda, a esperança do Constituinte de 1988, quando projetou um Brasil mais inclusivo, justo e que tinha no trabalho um fator de dignidade humana? Continuaria altiva e ativa a nos ensinar de que não devemos desistir de lutar por um Poder Judiciário protetivo, plural e inclusivo?

Nunca saberei!

É que a “Utopia” não entrou na sala de audiência, tampouco apresentou qualquer justificativa para a sua ausência. A “Utopia”, desatendendo ao chamado judicial, confessara que desistira da Justiça do Trabalho. E a consequência de sua inércia restou em ato imediatamente praticado pelo magistrado. Não sei se tão frustrado quanto eu, ou já acostumado com atos semelhantes, o juiz aplicou à fugidia “Utopia” a pena de revelia.

Logo depois descobri que aquela “Utopia” não passava de uma empresa terceirizada, uma fugitiva contumaz da própria Justiça do Trabalho. A não utópica empresa era uma das infinitas outras nominações criadas para, diariamente, transformar em apropriação ilícita a riqueza produzida com o sangue e o suor da classe trabalhadora. A sua ausência, no entanto, significava que mais um trabalhador ficaria sem receber as verbas rescisórias legalmente devidas, tão necessárias diante da crise econômica, do desemprego galopante e da impossibilidade de se adiar a fome.

Aquele trabalhador será transformado em mera estatística da vergonhosa inadimplência patronal que habita os arquivos zumbis da Justiça do Trabalho, trágica e ironicamente, utilizada pelos próprios inadimplentes que pregam a morte da própria Justiça do Trabalho.

O grave é saber que a “Utopia” e suas irmãs seguem pregando a ilusória tese de que a gênese da questão está no “pecado original de nascer trabalhador ou trabalhadora no Brasil”, pois se recusam a compreender os “modernos e supremos tempos”. Escrevendo em outras palavras, tempos em que: os que não pagam os direitos trabalhistas também não querem ser obrigados a pagá-los.

Consola-me saber que a “Utopia” ausente naquela fatídica audiência não é a minha Utopia. E muito menos a Utopia que ainda resiste nos corações da classe trabalhadora, da advocacia militante, da magistratura consciente da sua função, do Ministério Público do Trabalho vigilante e de todos e todas que acreditam.

A Utopia que acredito segue firme na busca da Justiça negada aos trabalhadores da (des)Utopia revel. Até porque, como bem ensinou Eduardo Galeano: Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

Artigo originalmente publicado em: https://congressoemfoco.uol.com.br/

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