Webmail
Logo CBA
Terapia de Choque: neoliberalismo e privatizações no Brasil recente
ASCOM - CBA
10 de junho de 2020

É dinheiro que nós vamos botar usando a melhor tecnologia financeira lá de fora. Nós vamos botar dinheiro, e… vai dar certo, e nós vamos ganhar dinheiro. Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas. Então, nós tamos fazendo tudo by the book, direitinho.(Paulo Guedes, em 22.05.2020)

No dia 22 de maio de 2020, após decisão do ministro do STF, Celso de Mello, no Inquérito nº 4831, em que se apuram declarações feitas pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, sobre a interferência política de Jair Bolsonaro na Polícia Federal, tivemos acesso ao vídeo da reunião interministerial do Governo Federal, realizada um mês antes.

Foi um alvoroço! Os jornais televisivos e redes sociais se encheram de notícias sobre as falas do presidente e de seus ministros[1], que chocam pela irresponsabilidade com o país e conteúdo antidemocrático. A reunião foi convocada por solicitação do ministro da Casa Civil, Braga Netto, e tinha como objetivo apresentar, à equipe do Governo, um plano para enfrentar os impactos da crise do coronavírus no país.

Durante a reunião, o ministro da Economia, Paulo Guedes, proferiu a frase destacada na epígrafe acima. A expressão by the book, em tradução livre, poderia significar “segundo a cartilha”. Nesse caso, resta saber o que diz a tal cartilha e como, ao longo da história, ela foi implementada no Brasil, em cada conjuntura política e por determinadas forças sociais.

Neoliberalismo e neodesenvolvimenstismo no Brasil

O neoliberalismo teve sua “experiência piloto” durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973–1990), no Chile, cujo programa econômico passou – a certa altura – a ser dirigido pelos chamados Chicago Boys[2]. As medidas de corte neoliberal, fundadas em privatizações, diminuição do gasto público e desnacionalização da economia, foram implementadas por alguns governos latino-americanos, em especial na década de 1990, após o Consenso de Washington.

Acolhendo a caracterização do professor da Unicamp, economista e ex presidente do IPEA, Márcio Pochmann, podemos afirmar que o neoliberalismo possui “três tempos” no Brasil[3], tendo o primeiro iniciado no final do governo José Sarney (PMDB, hoje MDB) e se intensificado no governo Fernando Collor (à época, no PRN).

Em 1990, por meio da Medida Provisória nº 155, Collor criou o Programa Nacional de Desestatização (PND), que, posteriormente, se tornou a Lei nº 8.031/90, com vigência até 1997, quando foi substituída, já no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), pela Lei 9.491/97.

O impeachment de Collor e a gestão de Itamar Franco (PMDB) marcaram o intervalo entre o primeiro e o segundo tempo do neoliberalismo, que foi retomado com a eleição de FHC, em 1994.

Sob a afirmação de que “o setor privado é mais eficiente que o público”[4], o Brasil assistiu a um intenso processo de privatização, começando pelo leilão da USIMINAS, em 1991, e passando pelas privatizações da Vale do Rio Doce, em 1997, e do sistema Telebrás, em 1998, para citar algumas das mais conhecidas.

O intervalo entre o segundo e o terceiro tempo do neoliberalismo no Brasil teve início com a posse de Lula da Silva (PT), em 2003, e alcançou o seu fim com o “Golpe Jurídico, Parlamentar e Midiático” que afastou Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República, em 2016.

O governo Lula (PT) inaugurou o período do neodesenvolvimentismo, que, na definição do cientista político e professor da Unicamp, Armando Boito Jr., foi a “política de desenvolvimento possível dentro dos limites do modelo capitalista neoliberal”[5]. Com o apoio da chamada grande burguesia interna e de importantes setores da classe trabalhadora urbana e rural, o PT passou a ser a expressão partidária da Frente Política Neodesenvolvimentista.

Ainda que em menor escala, os governos petistas deram prosseguimento ao processo de desestatização, tendo, inclusive, sancionado a Lei 11.079 (Lei de Parcerias Público Privadas), em 2004, que foi um marco jurídico importante para viabilizar as concessões no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), iniciado no governo Lula e continuado por Dilma.

A atual combinação entre neoliberalismo e neofascismo

O terceiro tempo do neoliberalismo do Brasil iniciou com o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência e teve, como base para a sua implementação, uma nova configuração política. Michel Temer (PMDB) logrou unificar, em torno do seu programa econômico, as diversas frações de classe da burguesia brasileira, inclusive parte da burguesia interna que havia apoiado os governos petistas.

Apresentado ainda em outubro de 2015, pelo PMDB, o documento Uma Ponte Para o Futuro foi um retorno à década de 1990 e se materializou em medidas típicas de governos neoliberais, como a EC 95 (teto de gastos), a Reforma Trabalhista, o desmonte do BNDES[6] e um conjunto de privatizações, que continha, na lista anunciada em 2018, mais de 50 empresas estatais, incluindo a Eletrobrás, os Correios e a Casa da Moeda.

Um fato que merece destaque foi a sanção, por Michel Temer, da Lei nº 13.365/2016, que alterou a Lei nº 12.351/2010 e retirou, da Petrobrás, a obrigatoriedade de atuar como operadora e de possuir participação mínima de 30% nos consórcios formados para exploração de petróleo na camada pré-sal.  A referida lei, não por acaso, como revelou, posteriormente, o site WikiLeaks[7], foi de autoria do então senador José Serra (PSDB), na forma do PLS nº 131, aprovado, em 24 de fevereiro de 2016, pelo Senado Federal.

Em consonância com a iniciativa de Serra, o governo Temer colocou em marcha uma privatização “em fatias” do Sistema Petrobrás, que tem sido aprofundada pelo governo Bolsonaro, a exemplo da privatização de empresas subsidiárias, como a BR Distribuidora, bem como de refinarias e fábricas de fertilizantes, como no caso da FAFEN-PR, que foi o estopim da greve dos Petroleiros neste 2020[8].

Não obstante, o terceiro tempo do neoliberalismo veio acompanhado de um novo cenário político. Entusiasmada com a Operação Lava-Jato, a alta classe média protagonizou massivas manifestações pró-impeachment, entre 2015 e 2016, com um discurso contra a corrupção e a “velha política”[9]. Em que pese seu forte apoio aos atos, a direita tradicional (PSDB, DEM, entre outros) não conseguiu capitalizar politicamente o lavajatismo, o que fica claro quando se observa o desempenho de Geraldo Alckmin (PSDB) nas eleições presidenciais em 2018. O saldo político dessa situação complexa foi apropriado por um novo movimento político em ascensão: o neofascismo[10], cuja expressão máxima, no Brasil, é o próprio Jair Bolsonaro (sem partido).

O impressionante desempenho eleitoral de Bolsonaro (à época, no PSL), já no primeiro turno, fez com que boa parte das frações burguesas apoiassem sua candidatura[11], o que se consolidou no segundo turno contra Fernando Haddad (PT). A partir da eleição de Bolsonaro, então, a coesão da burguesia brasileira em torno do programa econômico continuou, agora se referenciando na figura do ministro da Economia, Paulo Guedes, que, não por acaso, tem fortes laços com os Chicago Boys[12].

Privatizações e retirada de direitos em tempos de pandemia

Com a chancela do presidente, Guedes tem elaborado decretos que constituem um  verdadeiro arcabouço jurídico privatista, como o de nº 10.263/2020, de 19 de fevereiro de 2020, que coloca o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) e o Plano Nacional de Desestatização (PND) sob a direção do Ministério da Economia, bem como o de nº 10.245/2020, de 06 de março de 2020, que institui uma avaliação periódica das empresas de controle direto da União e empresas estatais dependentes, em termos da sua sustentabilidade econômico-financeira, bem como a permanência das “razões de imperativo à segurança nacional” ou de “relevante interesse coletivo que justificaram a sua criação, que são os critérios previstos no art. 173 da Constituição Federal de 1988.

Pois bem, voltando ao dia 22 de abril de 2020, é curioso observar que, diante da crise sanitária, o Governo Federal apresentou duas propostas distintas, que se materializam, de um lado, no Plano Pró-Brasil, dos ministérios da Casa Civil, Infraestrutura e Desenvolvimento Regional e, de outro, no documento A Reconstrução do Estado, de autoria da Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados (SEDDM), do ministério da Economia, a qual é dirigida por Salim Mattar.

O Plano Pró-Brasil prevê, entre outras medidas, a retomada de obras paralisadas para criação de empregos, com consequente aumento do gasto público, o que, em resumo, não agrada “nem gregos, nem troianos”, porque, por um lado, prevê um gasto público demasiadamente tímido para ser considerado um PAC[13] e, por outro, desvia da rota adotada pelo Ministério da Economia, para o qual a elevação do gasto público parece ser pecado capital.

A proposta do Ministério da Economia estabelece um cronograma de privatização de empresas estatais e prevê, como saídas para a crise: (1) a venda de ativos da União; (2) a aceleração do programa de concessões e investimentos; e (3) reformas estruturantes.

Os Correios e a Casa da Moeda já aparecem como “em processo de desestatização”. A Eletrobras, a INFRAERO e a EBSERH, para citar alguns exemplos, figuram entre as 37 empresas “passíveis de desestatização” elencadas no documento.

Já o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, assim se pronunciou, a certa altura, durante a reunião interministerial: A oportunidade que nós temos, que a imprensa não tá… tá nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais (…) e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente, de inistério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação. (Ricardo Salles, em 22.05.2020)

O recado está dado: enquanto os meios de comunicação se ocupam do coronavírus e o povo brasileiro luta para sobreviver à pandemia, a equipe do ministro avança na desregulamentação das normas ambientais, que impedem ou, pelo menos, retardam, a exploração ilegal de recursos naturais, o desmatamento e a invasão de territórios pertencentes aos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil.[14]

Milton Friedman dizia que os momentos de crise econômica, política, social e até as catástrofes naturais deviam ser vistos como oportunidades para radicalizar ainda mais as ideias liberais, como em uma Terapia de Choque.[15]

A reunião interministerial de 22 de abril ilustra bem esta teoria e, ao que tudo indica, Guedes, Bolsonaro, Salles e outros representantes do bloco no poder estão dispostos a colocá-la à prova, em detrimento dos direitos e da vida de milhares de brasileiras e brasileiros.

*Breno Cavalcante é advogado, mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e integra a equipe do escritório Cezar Britto & Advogados Associados.

—///—

[1] As falas presentes neste artigo foram extraídas do documento oficial degravado constante no site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443959&ori=1

[2] Jovens que estudaram na Universidade de Chicago na década de 1950, sob os auspícios do economista Milton Friedman. A partir de 1975, eles assumiram a direção da pasta de Economia da Ditadura de Pinochet.

[3] Para saber mais, ver o artigo “os três tempos do neoliberalismo brasileiro: Collor, FHC e Temer”. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/2016/12/neoliberalismo-em-tres-tempos-no-brasil-7265/.

[4] Esse mito é combatido no artigo “Privatização não é eficiente nem resolve problema econômico”, da economista Juliane Furno: https://www.brasildefato.com.br/2018/03/27/privatizacao-nao-e-eficiente-nem-resolve-problema-economico/.

[5] Para conhecer melhor essa categoria, ver “As bases políticas do neodesenvolvimentismo”, do cientista político Armando Boito Jr. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16866/Painel%203%20-%20Novo%20Desenv%20BR%20-%20Boito%20-%20Bases%20Pol%20Neodesenv%20-%20PAPER.pdf

[6] Para saber mais sobre o tema, ver o artigo “Governo Temer promove desmonte do BNDES, aponta economista”, de Rafael Tatemoto. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2017/04/07/governo-temer-promove-desmonte-do-bndes-aponta-economista.

[7] Sobre o tema, ver a matéria “em 2011, WikiLeaks já revelava os planos de Serra de entregar o Pré-sal. Disponível em: https://revistaforum.com.br/noticias/em-2011-wikileaks-ja-revelava-os-planos-de-serra-de-entregar-o-pre-sal/

[8] Os movimentos sociais também protestam contra a venda de ativos e fechamento de sedes da Petrobrás em estados do Nordeste, que têm gerado demissões em massa de trabalhadores. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/greve-dos-petroleiros-veja-5-pontos-que-voce-precisa-entender/.

[9] Sobre esse tema, ver o artigo “O partido da Lava Jato”, do advogado Ricardo Gebrim. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2016/12/06/o-partido-da-lava-jato

[10] O Neofascismo tem, como programa máximo, assumir o controle total do Estado brasileiro. Para saber mais, ver “O Neofascismo no Brasil”, de Armando Boito Jr. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/332592911_O_NEOFASCISMO_NO_BRASIL.

[11] Em artigo recente, André Flores e Octavio del Passo analisaram o posicionamento atual dessas frações burguesas e os conflitos políticos que têm protagonizado, em razão da pandemia da COVID-19. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/04/16/artigo-as-fracoes-burguesas-na-crise-da-covid-19-apontamentos-preliminares.

[12] Ver o artigo “O laço de Paulo Guedes com os ‘Chicago boys’ do Chile de Pinochet”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/30/politica/1540925012_110097.html

[13] Sobre a diferença do Plano Pro Brasil e os PACs dos governos petistas, ver artigo das economistas Juliane Furno e Iriana Cadó: https://www.brasildefato.com.br/2020/04/24/artigo-plano-pro-brasil-e-so-um-power-point-mal-feito.

[14] Para uma reflexão sobre esse tema, ver o artigo “O Brazil está matando o Brasil”, da advogada Catherine Coutinho. Disponível em: http://www.cezarbritto.adv.br/index.php/2020/05/06/o-brazil-esta-matando-o-brasil/.

[15] A este fenômeno a jornalista Naomi Klein deu o nome de “Doutrina do Choque”, ou seja, a forma pela qual os momentos de grave crise são aproveitados para radicalizar, ainda mais, as ideias liberais. Há um documentário que sintetiza suas ideias disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Y4p6MvwpUeo.


Artigo originalmente publicado em: https://osdivergentes.com.br/

 

ÚLTIMAS NOTÍCIAS


ÚLTIMAS ARTIGOS