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Sem a participação dos sindicatos, negociação individual facilita fraudes
ASCOM - CBA
14 de maio de 2020

No último mês de abril, o STF decidiu que é permitido haver acordos individuais com redução de salário sem a participação dos sindicatos. Em duas semanas já se sentem os efeitos de tal decisão de forma devastadora.

O presidente Bolsonaro editou a MP nº 936 [1], que determina que pode haver redução de jornada com diminuição de salário em decorrência da pandemia da Covid-19. Tal MP prevê a possibilidade de acordos individuais, sem o acompanhamento dos sindicatos.

Não se poderia tratar desiguais de forma igual, o que resulta em um aprofundamento das desigualdades. O Brasil é um dos países com maior concentração de renda do mundo. Com os efeitos da pandemia, tal concentração tem se aprofundado ainda mais. E mesmo com garantias constitucionais, assim como versa o artigo 2º da CLT, que diz que o risco da atividade econômica é do empregador, na prática o que se nota é uma “coletivização dos riscos” e privatização dos lucros. A participação dos sindicatos, por si só, não resolveria a questão. Mas criaria um contraponto e possibilitaria, de fato, uma negociação.

O ministro Ricardo Lewandowski deu decisão em uma liminar, no processo ADI 6363 [2], na qual garantiu que os sindicatos deveriam ser informados pelas empresas sobre os acordos individuais, para poderem manifestar se teriam interesse em realizar acordos coletivos. Em não se manifestando, os acordos individuais seriam válidos. Essa decisão do ministro foi submetida ao julgamento do pleno do STF nos dias 16 [3] e 17 [4] de abril.

Enquanto a liminar de Lewandowski esteve em vigor, o que existiu foi que cada sindicato foi procurado por centenas de empresas. Foram montadas forças-tarefas para se negociar condições de trabalho. Pois se a empresa quer reduzir a jornada de trabalho, ela está funcionando. Para funcionar existem regras de segurança, como indicam OIT, OMS, Ministério Público, etc. O governo desmontou o antigo Ministério do Trabalho, que deveria fiscalizar tais condições. Portanto, os sindicatos passam a ter uma importância fundamental nessa fiscalização, que pode ser a diferença entre a vida e até a morte de milhares de pessoas. Vários sindicatos fizeram assembleias por meio de videoconferência, improvisaram mecanismos de votações por aplicativos, buscando de forma enfática manter um contato direto com suas bases.

O STF revogou a liminar por maioria, 7 a 3, impondo que os trabalhadores “livremente” negociem com seus patrões. Na prática, o STF negou a existência dos sindicatos, utilizando-se de toda leva de argumentos falaciosos, como por exemplo, que serão milhares de acordos e os sindicatos não poderão dar conta. Na verdade, a liminar dizia que se o sindicato não se manifestasse, o acordo seria validado. Mas vários sindicatos montaram operativos para atender a essa demanda, desde celebrar até fiscalizar os acordos.

A decisão do STF vai contra várias convenções da OIT, como por exemplo a Convenção nº 98 [5]. A OIT, diante da pandemia, tem sido enfática no sentido de reafirmar a necessidade dos sindicatos para que haja qualquer negociação coletiva. A decisão do Supremo também fere o que está expresso na Constituição Federal:

Artigo 7º — São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

VI irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

Artigo 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:

VI é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”.

Portanto, não se trata de um exercício de lógica muito complexo. O texto é bem autoexplicativo. Premissa: o salário é irredutível. Salvo se houver acordo ou convenção coletiva. Portanto, há uma condição sine qua non, sem a qual não há validade. Para que haja acordo coletivo é necessário o sindicato.

Não se está aqui pedindo raciocínios lógicos muito elaborados. A simples leitura gramatical e a lógica aristotélica mais elementar conseguem expressar o problema. O malabarismo hermenêutico e jurídico aqui significa muito além da decisão em si. Sabe-se muito bem que não se trata de uma “excepcionalidade”, algo meramente transitório. Sabe-se que a situação aberta com a pandemia terá impactos de longo prazo. Trata-se de um objetivo, que é eliminar os sindicatos. Um retrocesso civilizatório de no mínimo dois séculos.

Durante a vigência da liminar dada pelo STF se observou nos sindicatos uma busca frenética das empresas por regularizar suas situações. Que buscavam fazer acordos, comprometendo-se com a segurança e a saúde dos trabalhadores. Mas tão logo houve a decisão da corte, as empresas passaram a esquivar-se dos sindicatos. De modo que chegam aos sindicatos diariamente denúncias anônimas, pois os trabalhadores têm medo de denunciar as empresas que na prática estão a falsificar acordos. Existem acordos realizados tratando da suspensão das atividades laborais, mas os trabalhadores são obrigados a trabalhar. Há ainda uma suposta redução de jornada, mas seguem ocorrendo horas extras, sem que se pague por elas.

Os sindicatos fazem denúncias, movem ações, mas infelizmente o Poder Judiciário não consegue chegar a tempo de salvar os trabalhadores desse incêndio, talvez chegue um dia com as cinzas já frias. Por outro, lado o governo federal atrasa todos os pagamentos. Assim, um amplo setor da população é empurrado para a fome e a miséria nesta pandemia.

O que o STF fez foi uma opção de classe atacando os mecanismos de organização da classe trabalhadora, enfraquecendo os sindicatos e, portanto, enfraquecendo também os empregados diante dos empregadores. Expondo um amplo número de categorias de trabalhadores não só à miséria, mas a graves riscos à saúde e à vida. Pois, por meio dos tais “acordos individuais”, já ocorre uma infinidade de ilegalidades e usurpação de direitos.

O Poder Judiciário fez uma opção consciente, em que a vida da classe trabalhadora não recebe qualquer proteção. Com tal opção, também expôs seus próprios limites para deter o arbítrio, não se propondo a ser o guardião da Constituição de 1988, mas apenas um guardião dos interesses de uma classe dominante. Diante da peste, da fome, da guerra social e da morte, os lucros estão protegidos, a vida dos trabalhadores não.

[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Mpv/mpv936.htm

[2] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5886604

[3] https://youtu.be/hWVcam3KGdE

[4] https://youtu.be/LFwWUDURYMQ

[5] https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235188/lang–pt/index.htm

Bruno Figueiredo é advogado, especialista em Direito do Trabalho e integra a equipe do escritório Parahyba F T Advocacia Associada em parceria com o escritório Cezar Britto & Advogados Associados.


Artigo originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/

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