*Adriene Hassen, Gabriel Remus e Mariana Atala Testoni
No dia 08 de junho o Brasil vivenciou mais um capítulo do caminho da injustiça, um
retrocesso histórico que põe em risco milhões de vidas. A Segunda Seção do Superior
Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o EREsp 1.886.929/SP e o EREsp 1.889.704/SP,
entendeu que o rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é
taxativo, isto é, que as operadoras de planos de saúde somente serão obrigadas a
cobrir aquilo que constar na lista definida pela agência reguladora.
No primeiro recurso, a Unimed buscou afastar a obrigatoriedade de custeio do
tratamento da Terapia ABA para uma criança com Transtorno do Espectro Autista. Já no
segundo, a seguradora se intentou o não pagamento de Terapia Transcraniana (ETCC)
para paciente com esquizofrenia paranoide.
O julgamento dos processos teve início em 2021 com o voto do ministro relator Luis
Felipe Salomão pela taxatividade mínima do rol de procedimentos da ANS. Após pedido
de vista da ministra Nancy Andrighi, o julgamento foi retomado em fevereiro de 2022,
ocasião em que referida ministra abriu divergência do relator e votou pela
qualificação exemplificativa do rol. O julgamento foi novamente interrompido com o
pedido de vista do ministro Villas Bôas Cueva.
Por fim, neste mês de junho, com um placar de 6x3, a Segunda Seção estabeleceu a
taxatividade do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS, modificando
profundamente precedente já consolidado, há mais de duas décadas, quanto às decisões
que entendiam se tratar de um rol mínimo de procedimentos. E, ainda, repercutindo
para além do âmbito da saúde privada, mas também, sobre o Sistema Único de Saúde
(SUS) e toda a esfera dos direitos fundamentais dos beneficiários.
1 – Rol Taxativo X Exemplificativo.
Nos termos da Lei 9.961/2000, a ANS é a autarquia especial que regula e fiscaliza o
setor de saúde suplementar no país. Esse, por sua vez, pode ser entendido como o
ramo da atividade que envolve a operação de planos e seguros privados de assistência
médica à saúde.
Dentre as funções da autarquia, há, segundo o artigo 4º, III, a competência de
“elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência
básica para os fins do disposto na Lei 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas
excepcionalidades”. Portanto, esse rol constitui-se como uma referência básica,
meramente exemplificativa, norteando posteriores interpretações, assim, garantindo
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Como citado anteriormente, a jurisprudência do STJ se estabeleceu, até então, no
sentido de que esse rol de procedimentos detém natureza exemplificativa e garante
aos usuários dos planos de saúde o direito ao acesso à saúde e à vida por intermédio
da cobertura do tratamento de doenças novas e raras mesmo que fora da lista, e,
ainda, à posterior ampliação dos limites do tratamento. Desse modo, as operadoras de
planos de saúde arcavam com os tratamentos determinados pelos médicos dos pacientes,
desde que devidamente aprovados e listados na CID e ainda, não se tratando das
exceções fixadas nos incisos do art. 10 da Lei 9.656/1998.
Mesmo sedimentado o entendimento da natureza exemplificativa do rol, não raros eram
os descumprimentos do dever de cobertura pelas operadoras de planos de saúde que se
negavam a realizar o custeio de certos procedimentos, desaguando na judicialização
de diversas demandas.
A partir desse junho de 2022, com a alteração de entendimento pelo STJ da natureza
do rol, apontado para sua taxatividade, as operadoras encontrarão respaldo judicial
para se recusarem a custear tratamentos que não estejam expressos na normativa da
ANS, em patente afronta à direitos fundamentais da pessoa humana.
2 – Decisão do STJ.
Na oportunidade do recente julgamento dos agravos pelo STJ, os principais argumentos
utilizados pelo ministro relator, Luis Felipe Salomão, para defender a taxatividade
do rol da ANS dizem respeito à necessidade de segurança jurídica e previsibilidade
para os contratantes, os quais, segundo o ministro, poderiam ser prejudicados caso
as operadoras tivessem de arcar indiscriminadamente com ordens judiciais para a
cobertura de procedimentos fora da lista da autarquia.
Ainda de acordo com o relator, o respeito à lista garantiria que a introdução de
novos fármacos seja precedida de avaliação criteriosa da ANS, especialmente em
relação à eficácia dos tratamentos e à adoção de novas tecnologias em saúde.
Apesar da argumentação baseada na segurança e previsibilidade, o STJ também decidiu
pela mitigação dessa taxatividade, isto é, pela existência de exceções. O Tribunal
entendeu que é possível a contratação de cobertura ampliada por parte do segurado,
bem como que o Judiciário pode determinar que o plano garanta ao beneficiário a
cobertura de procedimento não previsto pela agência reguladora, desde que
respeitados os critérios objetivos apresentados na decisão.
Contudo, o colegiado fixou parâmetros para que, em situações excepcionais, os planos
custeiem procedimentos não previstos na lista, a exemplo de terapias com
recomendação médica, sem substituto terapêutico no rol, e que tenham comprovação de
órgãos técnicos e aprovação de instituições que regulam o setor.
Em um acertado, embora vencido contraponto, a ministra Nancy Andrighi apresentou
dados apurados pela ANS de que as empresas operadoras de planos de saúde mantiveram
os lucros nos últimos anos, e afirmou que, além de permitir a majoração desses
ganhos pelas operadoras, a limitação da cobertura só iria onerar o consumidor e a
União, uma vez que haverá um claro aumento na busca do serviço ofertado pelo
SUS.
Para além disso, a ministra afirma que a natureza exemplificativa do referido rol
não é sinônimo de obrigatoriedade de todo e qualquer tratamento prescrito. Segundo
Andrighi, a compulsoriedade deve sempre ser verificada no caso concreto,
“reconhecida quando demonstrada a imprescindibilidade e indicação feita por
profissional habilitado, sem prejuízo de que a operadora faça prova do
contrário”.
A ministra destacou, ainda, que os atos editados pelas agências reguladoras, tais
como a ANS, não se sobrepõem nem podem desrespeitar normas, leis e princípios
constitucionais. Desse modo, não compete à ANS legislar, mas promover a normatização
dos setores, conforme a legislação disponível. Nessa lógica, a magistrada afirmou
que no tema em discussão, a Lei 9656/98, Lei dos Planos de Saúde, que prevê que as
operadoras são obrigadas a cobrir o tratamento de todas as doenças já previstas no
CID, se sobrepõe ao rol objeto da análise. Desta forma, a ANS não pode editar normas
que restrinjam tal lei.
3 – Impactos da decisão.
A alteração da natureza do rol da ANS de exemplificativo a taxativo, mesmo que de
forma mitigada, alterará significativamente o cenário da saúde no Brasil, esbarrando
em direitos, garantias e princípios fundamentais consolidados pela Constituição
Federal.
A Carta Magna é categórica ao conferir ao direito à saúde status de direito
fundamental. Logo no início do Capítulo II, referente aos direitos sociais, o art.
6º faz menção à importância do direito à saúde, necessário para a garantia da
dignidade da pessoa humana - princípio fundante do nosso ordenamento jurídico, e o
próprio direito à vida, garantia fundamental com previsão constitucional no artigo
5º. Não só isso, em seção exclusiva - Seção II do Capítulo II do Título VIII - e,
também, nos artigos 208, 227 da Constituição a saúde está salvaguardada.
Ainda, da análise dos artigos. 196, 197 e 199 da CF/88, verifica-se que o Poder
Público deve adotar medidas que ampliem o acesso à saúde, em benefício de toda a
população brasileira, seja quando o concretiza diretamente – pelo Sistema Único de
Saúde – ou quando atua como regulador da atividade privada. Assim, inegável a
importância dada à atividade exercida pelas operadoras de planos de saúde ao
contribuírem, ainda que em caráter suplementar, para a concretização do direito à
saúde garantido a todos pelo constituinte.
Nesse sentido, destaca-se o voto do ministro aposentado Marco Aurélio condutor da
ADI 1.931/DF (Pleno, julgada em 07/02/2018, DJe de 08/06/2018), no qual ele afirma
que “a promoção da saúde, mesmo na esfera privada, não se vincula às premissas do
lucro” e que “a atuação no lucrativo mercado de planos de saúde não pode ocorrer à
revelia da importância desse serviço social, reconhecida no artigo 197 do Texto
Maior”.
A taxatividade do rol dos procedimentos da ANS não está em consonância com os
dispositivos constitucionais elencados, já que representa a prevalência do lucro sob
a vida e a saúde do povo, bem como a exclusão da população hiper vulnerável que é,
exatamente aquela parcela que mais necessita de procedimentos e atendimentos
especializados, como por exemplo, pessoas com deficiência, doenças autoimunes,
crônicas e raras, além de idosos. Tal fato é ainda mais evidente quando se leva em
consideração que, na decisão do STJ, ressaltou-se a possibilidade de “contratação de
cobertura ampliada por parte do segurado”, ou seja, caso queira - leia-se necessite
- que o plano cubra o seu tratamento - necessário para sua sobrevivência - basta
pagar mais, corroborando para o abismo social do país.
A ministra Nancy Andrighi, em seu voto no caso, evidencia a cruel realidade de que
“todo e qualquer evento ou procedimento excluído da cobertura contratual será
custeado pelo próprio beneficiário que dele necessitar – tornando o serviço ainda
mais custoso para o consumidor – ou pelo SUS – sobrecarregando ainda mais o sistema
público – de tal modo que se mostra utópica a ideia de que o rol taxativo tornaria
os planos de saúde mais acessíveis, sobretudo à massa de desassistidos pelas
políticas públicas de assistência à saúde”.
Ademais, o direito à saúde, à vida e à dignidade, enquanto fundamentais, não podem
estar na esfera da negociabilidade de operadoras e nem do judiciário. A prescrição
de determinado tratamento para a doença que acomete o beneficiário do plano de saúde
deve ser feita por profissional de saúde habilitado, considerando as condições
pessoais de cada paciente.
Assim, a decisão do STJ de que o rol de procedimentos da ANS é taxativo onera o
beneficiário, parte mais vulnerável da relação, uma vez que, segundo a ministra
Nancy, “além de demandar do consumidor um conhecimento técnico que ele, por sua
condição de vulnerabilidade, não possui nem pode ser obrigado a possuir, importa na
criação de um impedimento inaceitável de acesso do consumidor às diversas
modalidades de tratamento das enfermidades cobertas pelo plano de saúde e às novas
tecnologias que venham a surgir, simplesmente porque ele não tem como prever a
ocorrência dessas enfermidades ou a aparição dessas tecnologias, tampouco tem como
conhecer os tratamentos possíveis, no momento da tomada de sua decisão para a
celebração do contrato”.
Onera ainda, a medida em que passa a exigir do beneficiário, em estado de
vulnerabilidade por ter ceifado o direito ao tratamento de doença ao qual se
encontra acometido a hercúlea tarefa de demonstrar o cumprimento de requisitos
desproporcionais para que alcance a mitigação “oferecida” pelo STJ.
Desse modo, a referida decisão proveniente do alcunhado “Tribunal da Cidadania”
curiosamente e incoerentemente vilipendia direitos, deveres e garantias inerentes à
pessoa humana.
*Adriene Hassen é advogada graduada pela Faculdade de Direito
Milton Campos, em Minas Gerais, e integra a equipe do escritório Cezar Britto &
Advogados Associados. É especialista em Direito do Trabalho, Associativo, Sindical
com ênfase em Negociação Coletiva e em recursos de natureza extraordinária.
*Gabriel Remus é estagiário do escritório Cezar Britto &
Advogados Associados.
*Mariana Atala Testoni é estagiária do escritório Cezar Britto
& Advogados Associados.