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Reinventando o Natal – vinte e quatro horas por ano são dedicadas ao esforço de amar o próximo
Cezar Britto
23 de dezembro de 2017

O apaixonante exemplo do destemido Jesus Cristo, animado pelo carisma do bom velhinho Noel, faz o mês de dezembro fervilhar ao sabor da solidariedade. Campanhas, gincanas e quermesses destinadas aos “sem” destacam-se nos mais diversificados cantos e recantos das cidades. A promessa de um Natal sem fome é retomada em bonitos cartazes, assim como o compromisso de que não mais existirão crianças sem carências ou sem a tristeza pela ausência de um presente.

Os anônimos e os exageradamente assumidos, mesmo que com visões de mundo distintas, unem-se no mesmo ideal fraterno. Até os amigos secretos são revelados nas milhares de não ocultas festas de confraternizações, em que amizade e solidariedade são embrulhadas nos presentes, conferindo um toque especial ao já especialíssimo dia.

Não sem razão, portanto, a comovente, contagiosa e mágica comoção coletiva se espelha durante todos os dias do mais vermelho mês do calendário mundial. A fração do tempo em que, a cada dia, recebemos emocionantes mensagens de amor ao próximo e somos convidados a participar de fraternais caixinhas de doações que ressaltam a importância de dezembro para o compartilhamento do espírito natalino com os destituídos de bens, materiais ou não.

Afinal, quando o dia 25 de dezembro chegar, entre perus, panetones e outras guloseimas esparramadas na ceia comemorativa do nascimento de Cristo, poderemos, finalmente, recitar, Djvaneando, que nas esquinas natalinas da vida e nos arredores do amor, destinamos o nosso Natal para aqueles que sabem o que é não ter e ter que ter pra dar.

Ironia ou premonição, o mês de dezembro faz também renascer em nossas vozes e mentes a sua canção favorita, exaustivamente servida em toda ambiência preparatória da grande noite de Natal. Nesta, o mantra natalino será outra e outras vezes recitados, como se antecipadamente soubéssemos que o anoitecer sempre revelará que a prometida felicidade do outro é uma brincadeira de papel ou mesmo um tipo de brinquedo que não tem.

É que, por experiência repetida de outras eras, a humanidade sabe que dois mil e dezessete dias de Natal não serviram para criar um sentimento permanente de solidariedade entre as pessoas. Os que têm e os sem continuarão, no amanhecer do dia 26 de dezembro, vivendo esperanças e mundos distintos, pois a magia natalina sempre tem dia e hora para começar e acabar.

Infelizmente, o calendário social parece apontar que apenas e exatas vinte e quatro horas por ano são dedicadas ao esforço universal de amar o próximo. Nos demais dias, cada sem-teto seguirá buscando abrigo nas marquises dos palácios, sonhando que seus moradores despertem do sono eterno provocado por uma apatia proposital.

O sem-terra, que não mais sonha em ver a terra dividida, continuará gritando palavras surdas, pois nunca ouvidas no latifúndio da insensibilidade econômica. O sem-trabalho e o sem-CLT dedicarão parte de sua vida a garimpar, inutilmente, os classificados e as agências de emprego em busca do trabalho digno que fora extinto no mercado do lucro fácil. O sem-escola continuará excluído do libertador saber, pois, após a suspensão por vinte anos da parte cidadã da Constituição Federal, não poderá contar com os programas de inclusão educacional.

São tantos os sem que seguirão sem que fico até sem espaço para apontá-los aqui, até mesmo o sem-aposentadoria, nova categoria que o governo plantonista quer criar, certamente inspirado no secular e inaposentável velhinho Noel.

Mas ainda temos tempo para fazer este Natal diferente dos demais, quem sabe até o 25 de dezembro da virada, aquele que, por ser tão bom, se tornou eterno. É só acreditarmos no poder de reinventar o calendário oficial, inscrevendo na folhinha que todo dia é Natal e que, nele, a humanidade será despertada com gestos de amizade que se dá, espalhando a solidariedade sem papel no avançar das horas, para, à noite, dormir embalada pelo sono da felicidade que vem.

Afinal, Natalizar diariamente o Natal, é reinventar a vida, pois, como nos presenteou Cecília Meireles, “a vida, a vida, a vida, a vida só possível reinventada”. Não tenho dúvida, assim, que o ter-compartilhado seria o grande presente de Natal concedido à humanidade, pois, como cantou Beto Guedes, já choramos muito, muitos se perderam no caminho, mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera. Feliz Natal para todas e todos, diariamente!

Artigo originalmente publicado em: http://congressoemfoco.uol.com.br/

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