Em manifesto dirigido aos “povos do Reino”, o príncipe regente Dom Pedro, no distante 1º de agosto de 1822, lançava histórico grito em que conclamava “a união dos habitantes do Ceará, do Maranhão, do riquíssimo Pará, dos ilustres baianos, dos valentes mineiros, dos intrépidos pernambucanos defensores da liberdade brasileira, das Províncias do Sul do Brasil, do Amazonas ao Prata”. No manifesto preparatório da Independência, que logo ocorreria no dia 7 de setembro de 1822, anotou o “viveiro de fardados lobos, que ainda sustentam os sanguinários caprichos do partido faccioso”, bem assim fazendo recordar aos pernambucanos “das fogueiras do Bonito e das cenas do Recife”.
Referia-se o futuro imperador do Brasil ao massacre ordenado pelo capitão-general Luís do Rego Barreto – último governador pernambucano designado pelo Rei de Portugal – contra um ajuntamento de sem-terra no Sítio da Pedra do Rodeador, em Bonito (PE). O militar confundira o movimento religioso sebastianista liderado por Silvestre José dos Santos – um desertor das milícias locais – com os agitados republicanos da Revolução Pernambucana de 1817.
Sabe-se que as tropas leais ao rei português Dom João VI, diante da grande quantidade de feridos e de mortos em razão do massacre, juntaram os corpos dos vencidos – vivos e mortos – formando uma imensa e insana fogueira humana. Daí a frase do jovem regente, denunciando o crime praticado em nome do Rei, estimulando os movimentos que lutavam pela Independência do Brasil: “Recordai-vos, pernambucanos, das fogueiras do Bonito”.
O município de Bonito – no final do século 18 – destacava-se pelas imensas florestas e por integrar área abrangida pelo importante e simbólico Quilombo dos Palmares. Ambos vitimados pela insana lógica patrimonialista dos que se julgam no direito de ter a propriedade das pessoas, das terras e das riquezas naturais. Massacres que – a exemplo de Bonito e Quilombo – o avançar da história, o aperfeiçoamento da vida em sociedade e a Constituição de 1988, passaram a considerar “crimes contra a humanidade”.
Recordei-me das fogueiras do Bonito diante das fogueiras da Amazônia. É que, mais uma vez, o patrimonialismo externou – agora em pleno século 21 – o seu desprezo pela natureza, pelo desenvolvimento sustentável e pelos povos originários. Outra vez a ganância dos que querem transformar o planeta Terra em produto apropriável e disponível ao insaciável mercado. Novamente a devastação dos métodos, dos valores e da vida nascida nas florestas enquanto bens inalienáveis da humanidade.
A Amazônia e todas as florestas do mundo não podem ser massacradas pelo ambicioso
fogo da ideologia do lucro e dos governantes que a professam. Os povos amazônicos e
todos os povos do mundo não podem ser massacrados pela ideologia da coisificação da
pessoa humana. A Amazônia e todas as riquezas do mundo não podem ser massacradas
pela ideologia da apropriação privada do bem público e comum.
No manifesto em que o príncipe regente conclama e proclama a nação a lutar pela
Independência do Brasil, também por ele foi registrado: “Está acabado o tempo de
enganar os homens. Os governos que ainda querem fundar o seu poder sobre a
pretendida ignorância dos povos, ou sobre antigos erros e abusos, têm de ver o
colosso da sua grandeza tombar da frágil base sobre que se erguera outrora”.
As fogueiras da Amazônia mantêm-se ardentes, devastadoras e impiedosas com a vida que sempre se protegeu nas frondosas árvores da floresta. E sem perspectivas de serem apagadas, pois nutridas pela criminosa mão humana dos que enxergam na floresta-viva o maior empecilho à ambição insaciável de mineradoras, madeireiros, fazendeiros, grileiros e traficantes de trabalho análogo à escravo. Mãos que agora encontram apoio nos governantes que se recusam a “acabar o tempo de enganar os homens”.
Artigo originalmente publicado em: https://congressoemfoco.uol.com.br/
Leia AQUI outros artigos de Cezar Britto.