Eu estava em uma festa comemorativa do encerramento do ano letivo de meu filho caçula, quando, repentinamente, fui interrompido por uma voz bêbada, deselegante e incrivelmente alta. Chamava-me, insistentemente, de “presidente”. Confesso que fico desconfortável quando sou identificado por este apelido substitutivo de meu real nome, especialmente em uma ambiência informal e sem qualquer relação com a advocacia. Este nome apenas perde em termo de razoabilidade para a alcunha “doutor”, esta somente “justificável” quando pronunciada em razão do trabalho e apenas durante este lapso temporal. Mas vá explicar a um ébrio esta regra de etiqueta tão pessoal de um pai que, como qualquer outro, queria apenas curtir o sucesso do bruguelo.
Percebendo o meu silêncio em relação ao “chamado presidencial”, cuidou o bêbado de explicar a razão de sua insistência, agora formulando a pergunta título desta crônica: “Presidente, o senhor sabe por que esse povo safado quer reduzir a idade penal?” Reconheço que o tema atraiu a minha atenção, pois frequentemente voltamos à fase jornalística de “milicianíssimo” apelo popular, principalmente quando um novo crime ganha repercussão. Nestes momentos de puro sensacionalismo, aponta-se que a “solução” para se combater a violência estaria no quarteto punitivo: 1) pena de morte; 2) redução da maioridade penal; 3) aumento do rol dos crimes tidos como hediondos; 4) criminalização do direito de defesa. Mas preferi não dar seguimento ao insistente bêbado, pois é arriscado alimentar uma boa conversa quando o precioso líquido, paradoxalmente, provoca uma espécie de jejum de responsabilidade argumentativa. E naquele ambiente escolar, não seria prudente alimentar um assunto sólido com um personagem de responsabilidade fluida.
Esqueci, entretanto, de “combinar com os russos” ou, escrevendo através de outro gole vocabular, nada acertei com o instigante personagem embriagado. E ele seguia a perguntar: “Presidente, o senhor sabe por que esse povo safado quer reduzir a idade penal?” E foi assim na fila da pipoca, dos brinquedos, da entrega dos diplomas e até mesmo do banheiro. Percebi então que a única forma segura de sair impune daquela forçada peleja era justamente ouvir a revelação da “safadeza política anunciada”. Cuidei, antes, de procurar um lugar reservado para receber a valorosa resposta insistentemente ofertada. E ela se fez de forma surpreendente. Disse-me ele:
– Esses políticos safados querem reduzir a maioridade penal para poderem, impunemente, “comer” as nossas filhinhas.
Confesso que fiquei confuso com sua inusitada conclusão. Eu nunca havia escutado tão esdrúxulo diagnóstico. É que o debate sobre a redução penal tem como foco a figura “cruel e irrecuperável do adolescente agressor”, geralmente exposto nos discursos fundamentalistas dos amantes do moralismo capenga, nas sensacionalistas antenas televisivas, nos programas policialescos que lucram com os dramas alheios, nas sanguinolentas páginas de folhetins impressos com as tintas do escárnio ou nas promessas eleitoreiras dos justiceiros de ocasião. Não é incomum, também, arrostarem-se argumentos que apontam que são irrecuperáveis e, por isso mesmo, merecem ser executados ou perpetuados em cárcere os “champinhas”, os “lambrosianos”, os papas-figos e todos aqueles que substituíram os livros pelas armas.
Ultrapassada a fase do espanto pela novidade argumentativa, percebi que bêbado estava o personagem desta crônica, mas jamais o seu certeiro raciocínio. Eu sempre apontei que implantar para valer a proposta inscrita no Estatuto da Criança e do Adolescente era uma das melhores ideias sobre o tema, pois a educação é instrumento mais eficaz do que a prisão. Nunca descartei a hipótese de que a sociedade, ainda que egoisticamente pensando, estaria mais segura em seu futuro quando, no dia da soltura do seu aprisionado “inimigo”, não recebesse em seu protegido seio patrimonial mais um afinado e recrutado aluno da Escola Carcerária do Crime que funciona, livremente, nos presídios e penitenciárias do Brasil.
Mas o sóbrio debatedor, ao retirar o adolescente tido como agressor do foco de sua análise, desprezando o tema relacionado à plausibilidade de sua reinserção social, apontou um dos graves e nunca discutido efeito colateral que será provocado pela redução da idade penal. Os crimes de estupro (art. 213 § 1), violação sexual mediante fraude (art. 215), assédio sexual (art. 216-A, § 2), favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput), prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com adolescente (art. 218-B, § 2), mediação para servir a lascívia de outrem (art. 227, § 1) e rufianismo (art. 230, § 1), todos do Código Penal, sofreriam profundas modificações, não mais se aplicando aos adolescentes, independentemente do gênero, com idade igual ou superior a 16 anos. Da mesma forma não estaria em vigor a agravante do art. 149-A, § 1, do Código Penal, que, a pretexto de estabelecer uma política de “prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas” (Lei 13.344/16, art. 13), aumentou em um terço a pena daquele que agenciar, aliciar, recrutar, transportar, comprar, alojar ou acolher pessoa, para fins de remover órgãos, tecidos ou parte do corpo, submeter à condição de escravo ou servidão, adoção ilegal ou exploração sexual de adolescente com idade igual ou superior a 16 anos.
É que, aplicando-se a “lógica punitiva” dos que pretendem reduzir a idade da maioridade penal, o adolescente ou a adolescente, podendo ser alvo de ação penal por compreender integralmente o caráter delituoso do ato praticado, saberia, conscientemente, resistir aos crimes cometidos pelo agressor ou agressora que frequenta o lar, a família, a vizinhança, a escola ou a ambiência política brasileira. A modificação da idade penal seria, portanto, o passe livre para tornar impune a “turba safada” que se alimenta de crimes praticados contra a adolescência brasileira. Assim, eles se envergonhariam do relatório publicado pela Unicef no dia 31 de outubro de 2017, intitulado Um Rosto Familiar, pois, retirando das estatísticas penais os crimes cometidos contra adolescente, o Brasil deixaria de ocupar o desonroso posto de sétimo país mais perigoso e mortal do mundo para crianças e adolescentes de 10 a 19 anos, ganhando até para o Afeganistão: a cada 7 minutos, uma criança ou um adolescente morre em nosso país vítima da violência.
Que desolador saber que, infelizmente, o lúcido homem era detentor de uma razão não bêbada!
Artigo originalmente publicado em: http://www.socialistamorena.com.br/
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