Estamos perante uma emergência sanitária mundial. Neste domingo, 29 de março o Brasil tem 139 mortos. A observação simples da evolução dos números dos outros países não nos permite conclusões otimistas. Viveremos situações completamente inéditas do ponto de vista da saúde pública, e isso já está, e vai afetar ainda mais a política.
Não pretendo desenvolver no texto uma análise de conjuntura, mas apenas um alerta sobre um ponto: a relação direta da emergência do combate à pandemia com medidas autoritárias.
Não há dúvidas que líderes como Bolsonaro podem usar a força e não a ciência para conter a epidemia. O paradoxo é que o obscurantismo Bolsonarista é tão grande que neste momento estamos num estágio anterior a este no Brasil. A ignorância científica combinada com a fortíssima pressão de vários setores burgueses fez com que até aqui o Presidente Jair Bolsonaro assumisse uma postura negacionista perante gravidade do vírus.
Precisamos ponderar os perigos que nos ameaçam não apenas na dimensão da saúde, mas também na esfera da política.
Mas a verdade vai se impor em alguns dias, no máximo semanas. Bolsonaro escolheu negar, ignorar a gravidade da pandemia, porém as projeções científicas já mostraram que a escala da tragédia será grande. A história também é ciência e nos baseando nos elementos do passado e do presente precisamos ponderar os perigos que nos ameaçam não apenas na dimensão da saúde, mas também na esfera da política.
A grande maioria dos países atingidos pelo vírus aplicou medidas de vigilância em massa de dados pessoais, promulgou decretos de emergência, ativou dispositivos de guerra que ampliam poderes dos governantes, militarizou a sociedade em nome de garantir a quarentena.
A China fechou portarias dos condomínios com barricadas policiais, usou os smartphones para monitorar a localização das pessoas, aprimorou o sofisticado sistema de controle digital com 200 milhões de câmeras, instalou controle de temperatura através das imagens direcionando pessoas suspeitas para a triagem, ativou drones controlando o fluxo de gente nas ruas, desenvolveu um novo software obrigatório nos smartphones chineses que envia um enorme volume de dados diários para o Estado, etc. Em síntese, a China, pelas características de seu regime político já é um país muito controlado, entretanto parece estar ocorrendo um salto com o novo Coronavírus.
Em Israel também estão sendo usados nos cidadãos mecanismos de vigilância contra o terrorismo autorizados por um decreto de emergência. Benjamin Netanyahu fechou o parlamento e os tribunais, numa nítida guinada autoritária. São muitos os governantes que se utilizaram de decretos de emergência e mecanismos autoritários.
Não por acaso a primeira de 37 propostas elaboradas por juristas para o combate ao coronavírus apresenta por diversos juristas é a preservação do pleno funcionamento do sistema político e das instituições democráticas e repúdio à decretação de “estado de sítio”.
O Estado de Sítio (Art 137, CF/88), o Estado de Defesa (Art 136, CF/88) e a Intervenção Federal são institutos presentes na Constituição de 1988 e que devem ser repudiados como meios de luta contra a pandemia. Na letra da lei o Estado de Sítio pode ser usado pelo Presidente da República para preservar “a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.”
Não temos dúvidas que o Presidente Jair Bolsonaro e o Vice Hamilton Mourão são avessos à democracia liberal e também ninguém pode negar que é muito provável vivermos um cenário de “calamidades de grandes proporções.” Não se trata de um debate jurídico, mas de um alerta político perante medidas já adotadas em outros países e mesmo no Brasil, onde apesar de negar a pandemia Bolosonaro já tentou flexibilizar a Lei de Acesso à Informação, medida acertadamente suspensa pelo STF, pediu ao STF a suspensão do prazo de validade das suas medidas provisórias, ampliou poderes do Executivo na disputa com os governadores, concentrando no presidente as decisões sobre os transportes (MP 926).
Outro exemplo envolvendo o Governo Dória em São Paulo também é expressão deste tipo de medida que devemos repudiar. O Governo do PSDB paulista, diferentemente de Bolsonaro, tem uma linha de quarentena controlada. O Sindicato dos Metroviários tem denunciado a alta circulação no metrô e exigido um plano de contingência coerente que proteja a categoria e ao mesmo tempo preserve o funcionamento do transporte apenas para serviços essenciais. A contradição é que, para o Governo Dória, os metroviários podem trabalhar normalmente, porém está expressamente proibida durante a pandemia uma tradição da categoria que é a “setorial”, uma conversa entre trabalhadores e sindicato no local de trabalho, mesmo aquelas que ocorrem ao ar livre. Neste caso concreto a medida restritiva atrapalha a batalha pela quarentena.
Quem se preocuparia com a liberdade ou com a privacidade diante do medo da morte?
O repúdio à uma possível militarização da sociedade não deve sair do horizonte da esquerda. O cenário é propício à tais medidas. Quem se preocuparia com a liberdade ou com a privacidade diante do medo da morte? Medidas autoritárias podem parecer eficazes no combate ao vírus porém são extremamente preocupantes se pensamos no grau de controle que o Estado pode adquirir sobre a vida das pessoas. A única arma que pode substituir a vigilância militarizada é a ciência, a informação e a auto organização.
Gloria Trogo, de São Paulo (SP)
Originalmente publicado em: https://esquerdaonline.com.br/