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O STF e as terras públicas federais na faixa de fronteiras para a reforma agrária

Cezar Britto
2 de Agosto de 2023

A organização não governamental britânica Oxfam publicou um estudo em 2016, denominado “Terrenos da desigualdade: terra, agricultura e desigualdades no Brasil rural”, em que se constatou que quase metade da área rural brasileira pertence a 1% dos proprietários do país. Os imóveis rurais com mais de mil hectares (0,91%) concentravam 45% de toda a área de produção agrícola, de gado e plantação de monocultura florestal. Já os estabelecimentos com menos de 10 hectares representam cerca de 47% do total das propriedades do Brasil, mas ocupam menos de 2,3% da área rural total.

No que tange à destinação da produção, cumpre destacar que a pequena agricultura produz mais de 70% dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros e das brasileiras, já que os grandes imóveis rurais exportam a maior parte da sua produção.

Com base neste retrato da realidade agrária brasileira, extremamente desigual no que tange à democratização do acesso à terra, o Supremo Tribunal Federal finalizou, em junho deste ano, o julgamento da ADI 5623/DF, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares contra dispositivos da Lei 13.178/2015, que dispõem sobre os registros imobiliários em nome de particulares de terras públicas federais situadas na faixa de fronteiras (150 km de largura, a partir da linha de fronteira – área correspondente a 16,7% do território nacional, abarcando 588 municípios e mais de 10 milhões de habitantes).

Atenta às disposições constitucionais dos arts. 5º, XXIII (“a propriedade atenderá a sua função social), 20, II e §2º (são bens da União as terras localizadas na faixa de fronteira), 186 (requisitos para o cumprimento da função social da propriedade rural) e 188 (as terras públicas e devolutas devem ser destinadas para reforma agrária), a Suprema Corte decidiu, por unanimidade, pela fixação de condições constitucionais para a ratificação de registros imobiliários

“além dos requisitos formais previstos naquele diploma, que os respectivos imóveis rurais se submetam à política agrícola e ao plano nacional de reforma agrária previstos no art. 188 da Constituição da República e dos demais dispositivos constitucionais que protegem os bens imóveis que atendam a sua função social (inc. XXIII do art. 5o., caput e inc. III do art. 170, art. 186 da Constituição do Brasil)”.
– ADI 5623/DF

Ou seja, mais importante do que as condicionantes previstas na Lei 13.178/15, o processo de ratificação dos registros dos imóveis rurais, especialmente os grandes, deve observância obrigatória e estrita das normas constitucionais que resguardam as propriedades que cumprem sua função social, em seus diversos aspectos e de forma simultânea, quais sejam, ambiental, trabalhista e econômico.

Para tanto, a ministra relatora, Carmen Lúcia, trouxe trecho de decisão de 2004 do ministro Celso de Mello que sedimentou o entendimento do STF de que “o direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada” (ADI 2213). Isso no que diz respeito às propriedades particulares.

Já em relação às terras públicas, a partir da análise deste julgado do STF e da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é possível extrair as seguintes conclusões: a) a destinação de terras públicas e devolutas não se pode fazer em prejuízo da população do campo que aguarda a implementação do direito à reforma agrária, o que abrange a realização do direito à moradia, ao trabalho e à alimentação; b) urge a democratização do acesso à terra, desconcentrando a estrutura fundiária brasileira e; c) a diversificação da produção agrícola brasileira como garantia de alimentação adequada a todos e todas que residem no país, especialmente aos mais de 33 milhões que passam fome diariamente.

Tudo isso encontra-se em consonância com a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e outras Pessoas que Trabalham nas Zonas Rurais, aprovada na assembleia geral de 17 de dezembro de 2018, e que em seu art. 17.6 estimula os Estados membros a adotar “medidas apropriadas para levar a cabo reformas agrárias a fim de facilitar um acesso amplo e equitativo à terra e a outros recursos naturais necessários para que os camponeses e outras pessoas que trabalham nas zonas rurais possam disfrutar de condições de vida adequadas, para limitar a concentração e o controle excessivos da terra, tendo em conta a sua função social. Ao conceder terras, áreas de pesca e bosques de titularidade pública, os Estados devem dar prioridade aos camponeses sem terra, aos jovens, aos pequenos pescadores e a outros trabalhadores rurais”.

Em que pese a reforma agrária ainda pertencer ao rol das promessas constitucionais não realizadas, é de se ver, portanto, ao contrário do que é propagado por muitos, que a reforma agrária não constitui apenas uma bandeira de grupos sociais que lutam pela terra, mas também uma política constitucional representativa de um conjunto de projetos que visem a promover melhor distribuição da posse e uso das terras, a fim de atender a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, além de construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, bem como reduzir as desigualdades sociais e regionais, que integram os fundamentos e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Publicado originalmente em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/justica/o-stf-e-as-terras-publicas-federais-na-faixa-de-fronteiras-para-a-reforma-agraria

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