A nova legislação trabalhista brasileira, agora rebatizada de Consolidação das Lesões Trabalhistas, tornou-se uma das mais perversas do mundo, pois está centrada na compreensão de que o trabalho é “mero” custo de produção, uma “coisa” a ser apropriada pelo menor preço. A Reforma Trabalhista, por seu conteúdo demolidor de direitos, não fora aprovada por obra e graça do Divino Espírito Santo, tampouco nascera da vontade altruísta da classe trabalhadora de sacrificar-se em sofrimento temporal na busca da “salvação eterna”.
Ela nada mais é do que a cria nefasta do grupo patrimonialista que manda na política brasileira desde tempos imemoriais. Ou, em termos mais precisos e atuais, a legislação trabalhista é o produto final da “relação amorosa” do Congresso Nacional com o poder econômico financiador da imensa maioria dos parlamentares.
Não é preciso grande esforço reflexivo para se chegar a esta triste e óbvia compreensão, basta que se observe a composição do atual parlamento, como tem votado cada parlamentar e o seu relacionamento íntimo com as propostas impostas pelo governo representante dos patos amarelos, dos ruralistas desbotados e do capital multicolor.
Crueldade, compromisso ou caridade – conforme o credo abraçado – é do Congresso Nacional a competência de cada parlamentar federal fazer nascer um direito para o trabalhador ou determinar a morte de outro considerado mais injusto. É dele a iniciativa ou aprovação final de todo projeto de lei destinado a criar, regulamentar ou disciplinar o direito ao trabalho digno, assumindo a política que André Rebouças definiu como Aviltar e minimizar o salário é reescravizar, ou o conceito de trabalho como honra em que, se ela, no dizer de Gonzaguinha, Se morre, se mata, não dá pra ser feliz.
Mas não custa lembrar que fora este mesmo parlamento quem suspendera a parte social da Constituição Federal por vinte anos, bem assim que fora o governante a ele vinculado quem editara a judicialmente suspensa portaria ministerial que reabrira os portos brasileiros para que neles atracassem os navios negreiros e toda espécie de mentalidade escravista.
Foram os parlamentares quem estabeleceram, por exemplo, a permissão de se demitir o trabalhador por justa causa quando cometem crimes, faltam ao trabalho, maculam a imagem da empresa ou desrespeitam o superior hierárquico. Também autorizaram a demissão imotivada, a quitação anual de direitos não pagos, a possibilidade de mulheres grávidas trabalharem em ambientes insalubres, a supressão de direitos fixados em lei, o não pagamento de horas extras trabalhadas, a quebra da isonomia, dentre outras lesões. Enfim, tem sido o parlamento um dos protagonistas da política de retrocesso de direitos sociais, fazendo certeira, infelizmente, a constatação de José Lins do Rego: “O pior não é morrer de fome num deserto: é não ter o que comer na Terra Prometida”.
O Congresso Nacional apenas “esqueceu” de aplicar estas regras aos próprios parlamentares, praticando o vergonhoso lema do faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Neste sentido, paradoxalmente, manteve intacto o “contrato de trabalho”, sem afastamento ou demissão por justa causa, do senador que o STF apontou como praticante de falta grave, no mesmo compasso em que se recusou suspender o contrato do dirigente presidencial acusado de chefe de quadrilha e obstrução à Justiça. Continua-se pagando os vencimentos de parlamentares afastados, além de horas extras, diárias, liberações de emenda milionárias e mimos indenizatórios de esdrúxulas definições. E permanecem sem abrir processo disciplinar contra o “empregado do público” que, sem remorso, se apropria do patrimônio público. Quebram, assim, a regra simples tão bem sintetizada por Salvador Allende: Não basta que todos sejam iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos.
Talvez seja esta a grande oportunidade para se estabelecer uma nova regra de direito do trabalho ou direito administrativo, condição essencial para a tramitação de qualquer projeto de lei: direito à reciprocidade de tratamento. Destinar ao parlamentar o mesmo tratamento por ele fornecido ao cidadão, aos trabalhadores e aos servidores públicos. Aplicar no parlamento o que Gandhi chamou de o melhor argumento: o exemplo. Ou, na ausência, aprovar a proposta de Capistrano de Abreu para assim inscrever: Constituição Brasileira, artigo único: todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha na cara.
Cezar Britto é advogado e escritor, autor de livros jurídicos, romances e crônicas. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e da União dos Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB e da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.