A esperança de dias melhores no Brasil parece ter sido destroçada diante da notícia dos assassinatos bárbaros de Bruno Pereira e Dom Phillips no Vale do Javari. A programação de se fazer qualquer balanço sobre a pandemia, com todas e tantas perdas suportadas e, talvez, qualquer avaliação de contributos que esse período sombrio pudesse trazer, foi atropelada frente ao crime sanguinário contra um indigenista e um jornalista, ambos vítimas e figuras centrais na defesa dos direitos dos povos indígenas e do meio ambiente.
E a arma mais letal, com o cenário de desesperança vivido, está no posicionamento do chefe de Estado brasileiro, que assume a situação cáotica e atroz das mortes de Bruno e Dom, como se normal e esperado fosse; que é negligente nas buscas de Bruno e Dom, tal como denunciado pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) no Tribunal Penal Internacional; que é irreverente ao sofrimento das famílias e amigos; que dá de ombros para a questão diplomática envolvida; que assume, enquanto bandeira (anti) política, o seu posicionamento contra a existência de povos indígenas e contra a preservação do meio ambiente.
A importância das pautas endossadas e trabalhadas por Bruno e Dom deveria ter deixado de ser questionada diante da grave crise suportada pela população mundial com a pandemia do coronavírus. Eram de se esperar cenários caóticos como consequência das desenfreadas explorações da natureza, aqui também contemplada a humanidade e, especialmente, as sub-humanidades, descritas por Ailton Krenak como os sujeitos e as subjetividades rejeitadas pelo projeto de civilização ocidental. Inclusive, a publicação de seu livro “Ideias Para Adiar O Fim do Mundo”, em 2019, mesmo ano em que iniciada a doença (COVID-19), não parece coincidência ou aleatoriedade.
O fim do mundo de Krenak ocorreria no momento de adoção, completa e geral, da forma de viver idealizada pelo plano colonial. O fim do mundo romperia e assassinaria, em definitivo, as experiências e as sociabilidades hoje posicionadas na frente contra-hegemônica do projeto de civilização ocidental, tais quais os povos indígenas, quilombolas, campesinos e seus defensores.
A construção de ideias para adiar o fim do mundo se mostra cada vez mais urgente no Brasil de Bolsonaro, representante de um plano de governo que anuncia, única e simplesmente, a destruição de tudo. Em 2018, à época candidato, a célebre citação do presidente da República “tem que acabar com tudo”- à exceção dos numerosos escândalos de corrupção aos quais esteve envolvido – parece ter se encaminhado conforme o planejado.
No final do mês de abril de 2022, o Ministério da Saúde declarou o fim do estado de emergência causado pela pandemia do coronarívus. De acordo com os dados do governo federal, em junho deste mesmo ano, o Brasil superou a marca de 660 mil mortes por covid-19. O número assombroso é, certamente, reflexo do discurso anti-sanitarista do presidente da República, que justificou o detrimento das vidas perdidas em face da saúde do mercado financeiro, da empregabilidade da classe trabalhadora e do desenvolvimento aguardado para o país.
Vemos, contudo, que existem mais de 17 milhões de famílias em situação de extrema pobreza, ou seja, que recebem menos de duzentos e dez reais mensais (dados do CadÚnico), ainda, com base em pesquisa da Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar) no início de 2022, são mais de 33 milhões de pessoas passando fome no país, além da insegurança alimentar atingir mais da metade da população brasileira.
Parece que, além da resposta imediata, ao justificar as profundas desigualdades sociais mediante a utilização de conceitos e métodos libertários e meritocráticos; há, em conjunto, a atuação no campo da construção de ideias, ou a própria destruição das ideias, que fazem reproduzir um esvaziamento da consciência crítica, assim também descrito por Ailton Krenak como resultado da supervalorização das individualidades, ilustração exemplificada nas manifestações de Bolsonaro a respeito do armamento da população civil contra os “desqualificados”.
No cenário de permanente guerra vivenciado pelos povos indígenas, Krenak narra a forma como os povos originários encontraram para resistir e sobreviver desde a invasão das Américas: o ato de contar histórias. São as histórias as responsáveis pela evocação do passado, das origens das coletividades e do sentido das convivências e coexistências e, o contrário, a falta da noção das histórias que nos constitui, faz crer sermos donos do mundo.
O compromisso ético – com a realidade que nos cerca – nasce das histórias que constituem a coletividade da qual fazemos parte, para honrar o que foi construído e conquistado, ainda, para refutar e combater a repetição dos erros do passado.
O projeto neoliberal aparece, em sentido oposto, diante da ideia de que não existem barreiras para a evolução do capitalismo, portanto, para a exploração desmedida dos sujeitos e territórios neste plano cosmopolita e universalista que, no momento, parece antecipar o fim do mundo narrado por Krenak ou, em uma visão menos aterrorizante, alterar profundamente as condições da vida em sociedade da forma conhecida.
Em semelhante perspectiva à Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Julie Dorrico, Davi Kopenawa e outros pensadores de suma relevância no campo do ativismo indígena são capazes de trazer à compreensão o mundo construído, antes de tudo, no campo das ideias e, por consequência, das ações concretas que delas necessitam.
Bruno Pereira e Dom Phillips foram assassinados pelas ideias que carregavam. Veja, não se pretende aqui excluir as efetivas transformações e contribuições que trouxeram para as políticas indigenistas e ambientais, também, para instrução e informação de pessoas não indígenas sobre o avanço das medidas anti-indígenas e contra o meio ambiente. Dizer que foram assassinados por suas ideias é, na realidade, levar em consideração o peso estrondoso de toda e qualquer ideia compartilhada e nutrida: a face revolucionária ou ultrajante capaz de ser revelada.
No Brasil de 2022, tal qual o de 1500, idealizar a autodeterminação dos povos indígenas, a qualificação dos povos originários como titulares de direitos, o aspecto político e ancestral de seus territórios, são atos profundamente perigosos, ameaçadores e, ainda, desenrosos frente ao plano de desenvolvimento global.
O Vale do Javari, mesmo diante de todas as suas particularidades, pode representar o sofrimento e o enfrentamento das populações indígenas do norte do país que vivenciaram guerras ostensivas, trabalho escravo, ciclos da borracha, extração das chamadas “drogas do sertão”, epidemias de varíola e sarampo, entre outros mecanismos de genocídio, repressão e exploração indígena da qual resistem até o presente momento.
A dita “terra sem lei” de Bolsonaro, local de forte presença do narcotráfico, de comercialização ilegal de espécies raras de animais recebidas como artigos de luxo para brasileiros e estrangeiros abastados, de invasões diuturnas da terra indígena pelo garimpo, sacramenta outra grande promessa do discurso do Palácio do Planalto: não haverá combate aos assassinatos e às invasões em terras indígenas, em verdade, haverá a premiação daqueles que, pretensamente, tentarem acabar com os povos indígenas, aprofundar a crise ambiental e política no país e, forjadamente, comprovar que o Brasil é incapaz de exercer sua soberania alimentar.
Apesar das diversas contradições e mentiras de Bolsonaro, não há como negar a concretude da sua política de destruição, representada na imagem do presidente afirmando “acabar com tudo isso que tá aí” ao apontar para o Brasil. E adiar o fim do mundo, ou o fim do Brasil, não deveria significar morrer pelas ideias que carrega, mas, na verdade, gestar e promover o futuro possível para diferentes coletividades.
*Catherine Coutinho é advogada do escritório Cezar Britto e Advogados Associados e integra os núcleos de Direitos Humanos e Direito do Trabalho. É mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora do Grupo de Pesquisa “O Direito Achado Na Rua”.