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Meninos, eu vi!
Cezar Britto
13 de novembro de 2018

O poeta maranhense Gonçalves Dias, patrono da cadeira 15, da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Olavo Bilac, é daqueles personagens históricos que, simultaneamente, imortalizou-se e fez imortal a palavra. Indigenista de cocar cheio, fez da poesia I-juca-pirama, um dos mais belos escritos sobre as coisas nativas do Brasil.

Nessa sua inesquecível peça, contou-nos que “Juca Pirama”, um velho Timbira, coberto de glória, guardou a memória do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava do que ele contava, dizia prudente: – Meninos, eu vi!”

Naqueles tão distantes tempos, televisões, rádios, internet, satélites, redes sociais, telefones e celulares eram expressões estranhas entre as pessoas, até porque sequer imaginados como futuras invenções. Não se poderia pensar que as informações chegariam dentro das casas por ondas invisíveis ao olhar, estabelecendo formas de pensar, padrões culturais, manias sociais ou condutas morais vinculadas e monopolizadas por mãos marionetistas bem conhecidas.

Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Machado de Assis, Luiz Gama e tantos outros que viveram na plenitude da monarquia brasileira tinham na tradição da palavra, escrita ou verbal, o melhor dos meios de comunicação. E para eles, quando duvidavam da palavra exposta, bastava-se dizer: – Meninos, eu vi!

Hoje o povo timbira e milhões de outros nativos brasileiros não têm no velho Tupi ou no seu Deus Tupã os avaliadores das palavras que serão ditas. Tampouco invocam os testemunhos dos deuses e deusas Açutí (escrita), Arapé (dança), Aruanã (alegria), Caramuru (trovão), Caupé (beleza), Curupira (mata), Graçaí (eloquência), Guaipira (história), Guaraci (sol), Jaci (lua), Parajás (honra e justiça), Picê (poesia), Piná (simpatia), Polo (mensageiro de Tupã), Rudá (amor) e Yara (lagos).

Alguns dizem, entretanto, que apenas sobreviveram os cultos de adoração à sacralidade de Anhangá (trevas), de Pirarucu (mal), das Tiriricas (deusas do ódio, da raiva e da maldade) e de Xandoré (ódio), pois são os incontáveis testemunhos de pessoas que, vítimas doutras tantas, gritam, diariamente: – Meninos, eu vi!

O certo é que as modernas “deusas TV” e “Rede Social” confiscaram as prerrogativas do depoimento da veracidade dos fatos vividos ou escondidos do olhar, sendo invocadas quando duvidam das palavras espalhadas por seus seguidores. É que especialistas indicam que a maioria da população brasileira obtém as informações através dos canais televisivos e, mais recentemente, via mensagens virtuais. Estas informações são colhidas com ares de veracidade e repassadas no mesmo tom de autenticidade, mesmo quando visivelmente falsas.

Não sem razão as notícias falsas foram decisivas no processo eleitoral que apontou a vitória do candidato Jair Bolsonaro, sempre repassadas por fiéis seguidores como se dissessem: – Meninos, eu vi!

As deidades da pós-modernidade têm no Poder Judiciário um concorrente informativo de peso considerável, pois aquinhoado do poder constitucional da imparcialidade. Certamente por isso a notícia que dele brota, mesmo que emitida por pessoas compreensivelmente falíveis, ideologizadas e portadoras de conceitos e preconceitos típicos dos que convivem em sociedade, tem o mesmo poder de convencimento que o povo timbira atribuía a todos os deuses já reverenciados em terras tupiniquins.

Diante de uma decisão judicial os contadores de causos e causas, quando desafiados por seus interlocutores, logo dizem para aceite de todos: – Meninos, eu vi!

E viram, incrédulos, que um magistrado goiano, amigo dos inimigos da democracia, tinha orquestrado uma armação para impedir que as eleições de outubro ocorressem, somente frustrado no seu intento ilegal de mandar o Exército recolher as urnas por ação do CNJ.

E viram, ainda descrentes, que outros magistrados, coletivamente articulados, atacaram a liberdade de cátedra, de reunião e de opinião das universidades brasileiras, em gesto eleitoral apontado pelo STF como autoritário, desprezível e inconstitucional.

E viram, seguindo agnósticos, que um juiz, famoso por morar em sua ação judicial um indisfarçado ativismo político, trocara a toga pelo cargo ministerial oferecido por quem ajudara a eleger, especialmente quando afastou da disputa o favorito do povo e, após confessada visita eleitoral, divulgou peças processuais sigilosas com a intensão de interferir nas eleições presidenciais. Estes, apesar do que viram, quando escutam que setores da magistratura não foram neutros e interferiram no resultado das urnas, preferem acreditar nas divas informativas e delas retirarem a defesa, orgulhosamente proclamando o auto-de-fé: – Meninos, eu vi!

Entre vistos e não vistos, divindades e pessoas, a vida segue no Brasil pós-eleitoral! Arautos do apocalipse anunciam que teremos escolas sem história e saber, livros travestidos em armas mortais, imprensa escrevendo o nada, trabalhadores sem partidos ou ministérios, magistraturas extintas no dever de decidir, legislações desconstituídas na missão de proteger, negócios que plantam a destruição da natureza, democracia embrulhada em papel descartável e outros sacrilégios não disfarçados nas promessas eleitorais.

Outras vozes, entretanto, apregoam que a resistência será a tônica do amanhã desperto, pois da vida e da trintenária Constituição Federal poderemos extrair que “ninguém solta a mão de ninguém”, já que todas e todos são partes indivisíveis de um mundo plural, livre, igualitário, solidário, democrático e que acredita, invocando Gonzaguinha, ser possível asseverar: – Meninos, eu vi o povo nas ruas, querendo dar à luz para quem quisesse ver, para quem quisesse ganhar o brilho da luz… bebi com eles a coragem das cores, na avenida Brasil, aprender a colorir.

Artigo originalmente publicado em: https://congressoemfoco.uol.com.br/

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