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Invasões Supremas
Cezar Britto
11 de maio de 2020

Os marcianos invadiram a Terra no dia 30 de outubro de 1938. Assim anunciou a conceituada rádio estadunidense Columbia Broadcasting System (CBS) para milhões de ouvintes. A notícia da invasão extraterrestre, narrada em dramáticos detalhes, afirmava que a queda de um meteoro em uma fazenda de Nova Jersey era, na verdade, “uma nave cheia de alienígenas munidos de raios mortais e inclinados a exterminar a espécie humana”.

O pânico foi geral e desesperador. Mas pouco perceberam que o noticiário apenas reproduzia uma adaptação do livro A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, narrada por Orson Welles e pela companhia teatral Mercury Theatre on the Air. Embora a emissora tivesse avisado que a notícia era uma assumida ficção, os alienados ouvintes acreditaram na suprema invasão alienígena, nada questionando sobre a famosa fake news.

Longe do mundo ficcional, o dia 27 de outubro de 1965 testemunhou outra invasão suprema, porém não “marciana” e sem nenhum rastro de ser uma “notícia falsa”. Via Ato Institucional nº 2 – embora o Brasil já tivesse sido atingido no ano anterior por um meteoro antidemocrático, especialmente quando da edição do primeiro Ato Institucional que suspendeu garantias constitucionais, cassou mandatos governamentais e parlamentares, demitiu servidores públicos estáveis, transferiu para a reserva militares legalistas e concentrou no grupo golpista poderes ditatoriais – foi ampliada a competência da Justiça Militar e fez-se a primeira intervenção no STF. A intervenção determinou a mudança de onze para dezesseis os membros da Corte, acreditando-se, assim, na obtenção forçada de uma maioria favorável aos ventos autoritários.

Ainda fora do espaço sideral de Orson Welles, também o dia 16 de janeiro de 1969 fez pousar no Brasil outra invasão suprema, agora tendo como meteoro destrutivo o Ato Institucional nº 5. Outra vez a ditadura civil/militar  fez dura intervenção no STF, agora forçando a aposentadoria compulsória dos ministros Victor Nunes Leal (vice-presidente), Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Renunciaram em seguida – em corajoso gesto de solidariedade e protesto – os ministros Gonçalves de Oliveira (presidente) e o decano Lafayette de Andrade. Tornava-se evidente, assim, que regimes autoritários não conseguem conviver em harmonia democrática com um Poder Judiciário independente.

O mundo democrático nascido em 05 de outubro em 1988 pretendeu suprimir em definitivo qualquer invasão suprema nas instituições brasileiras. Escudado na recém-nascida Constituição Federal – apresentada ao Brasil em gesto histórico do deputado constituinte Ulysses Guimarães como a Carta Cidadã – o Poder Judiciário ganhou novas garantias e prerrogativas, especialmente aquelas que asseguraram aos magistrados a liberdade decisória, destacando-se a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de seus vencimentos. Mais ainda, reforçou a importância do Poder Judiciário como órgão autônomo e independente ao transformar em administradores da Justiça a advocacia e o Ministério Público.

Eis que, surpreendentemente, o dia 07 de maio de 2020 revela outra invasão suprema. Não mais a gabolice eleitoral de que bastariam “um cabo e um soldado para fechar o STF”, tampouco o repetido e ameaçador berro autoritário presente em vários atos públicos inconstitucionais apoiados por governantes e parlamentares saudosistas da ditadura civil-militar e seus famigerados atos institucionais. A invasão ao livre poder de decisão do STF foi pilotada pelo presidente Jair Bolsonaro e empresários de altas patentes. Queriam eles constranger, castrar e forçar o Poder Judiciário a não mais cumprir a sua missão constitucional. Pretendiam eles cassar o papel constitucional do STF.

A Constituição Federal, o direito à vida, a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade, a saúde pública e os direitos fundamentas são algumas das barreiras levantadas para proteger o Brasil de novos meteoros autoritários. Defender a democracia contra qualquer tipo de invasão – alienígena ou nacional – é tarefa que não pode ser recusada, acovardada ou traída pela paixão ao dinheiro.

Afinal, como já nos ensinou Ulysses Guimarães: “Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”.

Artigo originalmente publicado em: https://congressoemfoco.uol.com.br/

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