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Era uma vez a Palestina

Cezar Britto
12 de Outubro de 2023

Ainda no início de janeiro de 2023, após um longo debate sobre a Palestina, contou-me um professor de História do imenso e vergonhoso muro que isolava a Cisjordânia do resto do mundo. Disse-me da altura intransponível ao esperançar da liberdade, dos arames farpados segregadores, do saltar agitado dos sonhos e dos guardas armados a mirar as pessoas como inimigas. Narrou, revoltado, que a solidez do insensível concreto e a imensidão do conglomerado de cimento não conseguiam esconder os olhares tristes dos palestinos comprimidos nas poucas e vigiadas portas de acesso ao mundo exterior que um dia já fora integralmente de seus ancestrais. Como conclusão, dissera que o Muro era o símbolo visível dos crimes cometidos pelo Estado de Israel contra o povo palestino, em décadas de cachinas, expropriações, prisões e expulsões, o novo apartheid construído diante do olhar permissivo e cúmplice do mundo.

Não era eu, portanto, um interlocutor com conhecimento suficiente para contrapor ou acrescer dados ao que me contara o estudioso professor. Escutei em silêncio aprendiz. Sem o talento de Pablo Picasso, lembrei-me da fenomenal obra Guernica, em que o artista de Málaga apresentara a sua denúncia contra o genocídio espanhol comandado pelo generalíssimo-ditador Francisco Franco, apoiado pelos nazistas alemães. Indisciplinado, não pude deixar de desenhar na tela de meu coração uma aquarela pintada com as tintas da indignação. Na imperfeita obra que de mim brotava, o vergonhoso Muro da Cisjordânia surgia como uma cópia do que fora o muro erguido pelos nazistas para aprisionar o povo judeu no Gueto de Varsóvia. No assumido plágio mental, eu também pintava muros cercados de concretos, arames, armas e soldados desarmados de respeito à condição humana de cada morador da cercada Palestina.

Eu ilustrava a deprimente cena polonesa com nazistas que olhavam os aprisionados como se fossem uma espécie menor de raça, insignificante e coisa desprezível em que a morte não tinha qualquer valor. É que a morte, a fome e a doença eram mercadorias baratas, jogada em sarjetas abertas e visíveis aos olhos de todos. Sem perceber, o imperdoável Holocausto judeu era a fonte inspiradora da tela que reproduzia em mim uma espécie de Holocausto palestino. O inconsciente estava reproduzindo na minha aquarela o sofrimento e os crimes praticados em razão da soberba de uma raça que se pretendia pura, branca e suprema.

Não é mesmo fácil encontrar a solução ideal para o nosso grande enigma: como conter o deliberado avanço do Estado de Israel sobre os direitos naturais ao Estado da Palestina. Esperar, pacientemente, que um partido político humanista ganhe as eleições? Aguardar o nascimento de alguma liderança israelense que os respeite enquanto pessoa humana, conduzindo-nos para um definitivo processo de paz? Afastar pela força a elite política reacionária que os mata? Criar um partido árabe no território deles, enfrentado a extrema-direita? Formar um exército poderoso, nuclearmente estruturado, que possa derrotar as forças armadas dos invasores. Convencer os EUA e o países que investem e lucram bilhões com os israelenses a irem embora, após um choque de humanismo?

Os livros de História – e a Organização das Nações Unidas (ONU) ao criar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto – estavam corretos quando revelaram ao mundo os crimes nazistas para que a tragédia não voltasse a ser repetida. Entretanto, a questão palestina demonstra que não aprendemos com o passado, da mesma forma em que as guerras atuais apontam que os países não compreenderam a arte-denúncia de Picasso. O que adianta pedirmos para que não esqueçamos do sofrimento do povo judeu, se dele esquecemos quando se trata do povo palestino? A comunidade internacional não acredita que os palestinos pertencem a uma raça menor, insignificante e coisa desprezível em que a morte não tem qualquer valor? Os países que apoiam e a população que elege os políticos que constroem muros de ódio, segregacionismo e guerras nada santas não são cúmplices das bombas e atentados que ceifam vidas na Palestina? Terá sido ingenuidade acreditar que a ONU iria adotar medidas duras contra o Estado de Israel, obrigando-o a cumprir as suas próprias decisões, deixando os territórios ilegalmente ocupados?

Não concordo com guerras ou assassinatos de civis como instrumentos ideológicos ou de persuasão. A morte e o ódio não são mensagens que alicerçam qualquer processo de paz. Como pacifista por convicção, queria desenhar uma Palestina diferente da atual, governada por princípios mais justos, construída por um governo de unidade nacional, onde todas as ideias, pessoas, convicções políticas, pensamentos políticos, fé religiosa e etnias pudessem concordar em viver na mesma ambiência com instituições democráticas e, sobretudo, que tivessem o direito de escolha. Escolher, no agora, uma nova forma de caminhar.

Nunca estive na Palestina. Não tive o privilégio de conhecer o lugar que influenciou e foi influenciado pelo amoroso, pacifista e tolerante Jesus Cristo, o ser espiritual que dividiu a cronologia do mundo ocidental no antes e no depois do seu nascimento. Mas a conversa com o professor me estimulou a estudar melhor o que fora debatido e compreendido por mim no avançar do tempo. No mês de abril escrevi um livro (Era uma vez a Palestina) em que, na minha visão, narro as páginas escritas pelos povos que testemunharam o nascimento do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, as grandes religiões monoteístas nascidas de Abraão. Logo o publicarei. Esta foi a forma que encontrei para contribuir com a proposta de Jerusalém voltar a ser a Capital da Paz e o berço carinhoso de variadas religiões. Não mais passos de desamor, intolerância e violência. Não mais caminhos irrigados por bombas, massacres, segregacionismo e soberba racial. Não mais muros e paredes de ódios.

 

Publicado originalmente em: https://congressoemfoco.uol.com.br/area/mundo-cat/era-uma-vez-a-palestina

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