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Decisões do STF resgatam dignidade às famílias brasileiras durante a pandemia
Cezar Britto
17 de dezembro de 2021

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em 31 de janeiro de 2020, publicou a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional, ao constatar 7.711 casos confirmados e 170 mortes na China por COVID-19. No mundo, já eram 82 casos distribuídos em 18 países. Em 11 de março de 2020 a nova declaração pública da OMS já apontava a ocorrência da situação de pandemia em relação ao novo coronavírus. No Brasil ainda não havia nenhum registro oficial.

Passados quase dois anos, a pandemia de COVID-19 já atinge 210 países e territórios no planeta, acumulando mais de 270 milhões de casos e de 5 milhões de mortes. No Brasil tais números atingiram pouco mais de 22 milhões de pessoas contaminadas e 617 mil mortes evitáveis.

Com números tão altos e alarmantes, seguíamos padecendo de duas chagas: ineficiência em gestão governamental e crueldade política. Mas o Poder Judiciário, por meio da Suprema Corte, quebrou esta lógica perversa com a chamada “jurisprudência da crise sanitária”, contribuindo, através dela, para impedir efeitos ainda mais desastrosos para a população brasileira durante a pandemia.

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 828, proposta pelo partido político PSOL e relatada pelo ministro Roberto Barroso, é um claro exemplo dessa atuação positiva. Através do instrumento constitucional de controle concentrado, o STF decidiu suspender até o dia 31/03/2022 os atos relativos às desocupações, despejos e reintegrações de posse, urbanas ou rurais.

A histórica decisão do plenário virtual do STF acatou, validou e ampliou o prazo de vigência da liminar concedida pelo ministro relator em 03/06/2021, quando havia suspendido, pelo prazo de 6 meses, as medidas administrativas ou judiciais que resultassem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de natureza coletiva em imóveis que servissem de moradia ou que representassem área produtiva pelo trabalho individual ou familiar de populações vulneráveis, nos casos de ocupações anteriores a 20 de março de 2020, quando do início do estado de calamidade pública (Decreto Legislativo n° 6/2020). Nas ocupações ocorridas após esta data, o ministro determinou que o “Poder Público poderá atuar a fim de evitar a sua consolidação, desde que as pessoas sejam levadas para abrigos públicos ou que de outra forma se assegure a elas moradia adequada”.

Ao impedir os despejos coletivos país afora, a decisão do STF é mais do que o cumprimento dos preceitos fundamentais estabelecidos na Constituição. É a reafirmação de que compete ao Poder Judiciário coibir as medidas transloucadas tomadas pelo governo federal quando insiste em desobedecer às orientações da OMS, da ciência e do respeito à vida, fragilizando desta forma os mais pobres no Brasil. É, sobretudo, o reconhecimento pelo Poder Judiciário do estado de vulnerabilidade social imposto à cidadania brasileira há mais de 500 anos de patrimonialismo, desigualdade econômica e insensibilidade oficial.

O reflexo positivo da decisão do STF fora imediato e fundamental para estancar a tragédia social provocada pela histórica desigualdade brasileira, potencializada pela pandemia. Afinal, os dados levantados em recente pesquisa desenvolvida pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar indicam que nos últimos meses do ano passado (2020), cerca de 19 (dezenove) milhões de brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentou algum grau de insegurança alimentar.

Não são poucos os fatores que contribuem para a piora na situação das populações vulneráveis, dentre eles, a diminuição dos programas governamentais de assistência social, o aumento da inflação (especialmente de itens básicos como o gás, combustíveis, energia elétrica e cesta básica) e do desemprego, que apenas no trimestre encerrado em agosto de 2021 atingiu 13,2% da população brasileira, o que representa 13,7 milhões de trabalhadores e trabalhadoras. Neste contexto encontram-se mais de 123 mil famílias que estavam na iminência de sofrerem despejos, caso medidas de proteção de direitos e garantias individuais e coletivas não fossem asseguradas pelo Poder Público.

Os argumentos decisórios basearam-se em duas constatações: 1) a permanência da pandemia e a possibilidade dela se agravar em decorrência do aparecimento de novas variantes; 2) o recrudescimento das condições socioeconômicas da população brasileira como resultado da crise sanitária vivenciada globalmente. Estes fatores demonstram que a decisão do ministro Barroso, ratificada pela maioria do STF, é de extrema importância para milhares de famílias brasileiras, conferindo a elas dignidade ao impedir que perdessem as suas moradias, pois não conseguiriam arcar com o aluguel ou mesmo os encargos que as faziam inadimplentes. Deu-se aplicabilidade, portanto, aos preceitos fundamentais consignados na Constituição Federal, como o direito à saúde, à vida, à moradia como fundamentos da República, assim como o da dignidade da pessoa humana e o direito de pertencer a uma sociedade justa e solidária.

Sabe-se que o Brasil voltou a ocupar o mapa da fome mundial, o que exige da sociedade e do Poder Judiciário maior vigilância em relação aos atos negacionistas promovidos pelo presidente da República e os seus agentes governamentais. A decisão proferida nos autos da ADPF 828 simboliza um marco importante nesta quadra histórica do tempo, pois evitou o agravamento da miséria nacional, mantendo-se as moradias e atividade produtiva das famílias mais excluídas de direitos, o teto de seus filhos pequenos e o lar esperançado por dias melhores. Ao menos até o dia 31/03/2022, elas não testemunharão a apavorante, cruel, e dilacerante ordem judicial ou administrativa que as forçaria a compreender que a Constituição Federal infelizmente ainda é uma promessa não cumprida.

*Cezar Britto é membro vitalício da OAB Nacional e presidiu a Ordem de 2007 a 2010. Integra a equipe de advogados do escritório Cezar Britto & Advogados Associados e é membro da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD).

*Paulo Freire integra a equipe de advogados do escritório Cezar Britto & Advogados Associados e é também membro da Associação Brasileira de Juristas Pela Democracia (ABJD)

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