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Como nossos pais
Cezar Britto
3 de julho de 2019

Eu fui convidado, via WhatsApp, para participar de evento promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rio de Janeiro, OAB/RJ, tendo como tema o impacto do avanço tecnológico e o uso da robótica no mundo do trabalho. Aceitei o convite, não antes de tirar minhas “dúvidas” pelo mesmo meio de comunicação virtual, inclusive enviando para os organizadores o print da minha agenda também virtual. Era preciso sincronizar o meu tempo com o dos demais palestrantes. Dias depois, o celular me notificava do card do evento, pedindo que o compartilhasse com os meus contatos reservados e nas redes sociais em que participo. Cumpri a missão via um “tocar dos dedos”. Ainda virtualmente, testei um app pré-instalado no celular que prometia uma transcrição simultânea da fala a ser gravada. E, para minha surpresa, parte considerável do que seria a minha reflexão se transformara em texto escrito. Texto que, imediatamente, enviei via wi-fi para o computador da sala, que “adora trabalhar nas nuvens”.

A narrativa introdutória indica que o mundo virtual integrou-se, imperceptível ou não, ao cotidiano do mundo do trabalho, agilizando as comunicações, facilitando as pesquisas e diminuindo o tempo para a elaboração de um artigo. Esta visão inicial permitiria ao intérprete, de logo, concluir que o avanço tecnológico é imprescindível, inexorável e inerente ao processo histórico. Afinal, como propagandeado, no preciso mundo tecnológico as doenças serão curadas através da inteligência artificial, com os dados pessoais dos pacientes colhidos, repassados e diagnósticos para os robôs-médicos via smartpfones. Alexa, Bia, Bina, Han, Philip, Sophia, Victor, Walter e outros computadores mais íntimos encontrarão a solução para cada um dos enigmas mais complexos da vida diária, fazendo obsoletos os livros, as universidades e os infindáveis debates interpessoais para a obtenção da buscada pesquisa.

Neste “admirável mundo novo” – utilizando-se a nomenclatura em que Aldous Huxley narra a distopia futurística que imaginou – a vida será mais confortável nas casas digitais, que calcularão a temperatura, a sonoridade, a luminosidade e todos os mimos domésticos que possam garantir o conforto ambiental para os moradores. Até mesmo os alimentos, adquiridos em porções previamente preparadas com rigores nutricionais, serão apresentados como vencedores genéticos das pragas causadoras da fome. As distâncias serão encurtadas em tempo real, não raro através de meios de locomoção que observarão a proteção ao meio ambiente. A paz social será finalmente alcançada, com as rápidas e eficazes prisões de criminosos, identificados em aparelhos faciais ou através de dados automaticamente colhidos das redes sociais pelos robôs-policiais.

Aliás, os benefícios decorrentes dos avanços sociais já são sentidos e multiplicados na velocidade da luz, com as redes sociais aproximando pessoas, conhecidas ou não, pelo critério da afinidade e interesses comum. Louvam-se que os trabalhos de riscos não mais são destinados às pessoas humanas, deixando as tarefas mais comprometedoras da vida aos robôs. Tudo isso compartilhado, acompanhado, acessado e executado, individual e democraticamente, por bilhões de computadores portáteis que também servem para telefonar. E sem falar ainda, que se poderia acrescer os melhoramentos provocados no meio ambiente, poupando-o da destruição de milhares de árvores que, convertidas em papéis, lotariam arquivos-mortos, aterros não-sanitários, rios, mares e a já poluída ambiência pública. É como se fosse válida a profecia musical cantada por Belchior, quando, diante da polêmica entre o velho e novo, vaticinou: “Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”.

Um olhar mais atento ao exemplo apresentado na parte introdutória deste texto revelaria, entretanto, o desaparecimento de pessoas, instituições e instrumentos coletivos incorporados ao conceito de essencialidade no mesmo avançar da sociedade. Todos quedados, invisíveis, ao “novo que sempre vem”. Telefonistas, empresas de telefonia, datilógrafos, secretárias, estagiários, carteiros, ECT, marqueteiros, agências de propaganda e eletricitários se fizeram desnecessários nos rápidos toques tecnológicos preparatórios deste artigo. E, por serem invisíveis, sem qualquer sentimento de dor ou culpa, mesmo sendo óbvio que quanto mais a tecnologia avança mais desaparece ou é relegado ao obscurantismo o trabalho por ela tornado obsoleto ou inimigo.

Não é novidade que os maquinários do campo aprofundaram o êxodo rural e os robôs industriais geraram desempregados e desalentados em proporções geométricas, vários deles sem qualquer perspectiva inclusiva de habitar no mundo da boa aventurança tecnológica. No mesmo ritmo estão ficando desatualizados e condenados ao desaparecimento os bancários, os agentes de seguro, os taxistas, os hotéis, os restaurantes e comerciantes que não estão vinculados aos serviços de entrega virtuais e milhões de outras profissões e incontáveis empreendimentos. A advocacia e os juízes já estão sendo trocados pela inteligência artificial, assim como já começou o processo de extinção de cargos como os de taquígrafos, oficiais de justiça e escreventes.

Também não é segredo que as profissões e empreendimentos extintos não estão sendo substituídos por novas fórmulas profissionais mais adaptadas ao tempo tecnológico. É que o número de pessoas contratadas pelas novas tecnologias é infinitamente inferior ao número de pessoas que serão descartadas como “inaproveitáveis pelo mercado”. O terrível efeito colateral dos “novos tempos”, paradoxalmente, é o de não se encontrar uma solução inteligente, socialmente aceitável e economicamente digna para a “velha massa de pessoas” excluída dos benefícios propagandeados pela Era Digital. O que se afirma é que os excluídos são os verdadeiros culpados da própria exclusão, pois, ao não se prepararem adequadamente para o “tempo nascente”, não merecem um lugar ao sol.

É preciso ficar alerta aos sinais, fatos e constatações de que as máquinas e os avanços tecnológicos continuam, única e exclusivamente à disposição do direito de ter. A “nova regulação do trabalho” proposta pela Quarta Revolução Industrial para os “trabalhadores sobreviventes”, conhecida como “uberização do trabalho”, retoma e amplia a exploração originária da primeira Revolução Industrial, afastando todo o sistema protetivo conquistado e posto nos avançar do tempo. A “coisificação” do trabalho segue presente na compreensão de um mundo centrado na lógica da proteção do ter e na cumulação de poder e de riquezas materiais. Não choca à sociedade dominante a simples constatação de que os “modernos trabalhadores uberizados” têm jornadas de trabalho imensamente superiores à histórica e conquistada oito horas diárias, que os riscos e os instrumentos de trabalho são dos próprios “urberizados”, que não controlam ou sabem como são arrecadados ou distribuídos os lucros do trabalho por eles produzidos e, igualmente grave, que podem ser demitidos por um simples comando virtual, sem qualquer motivação ou indenização. Ao contrário, a sociedade exige mais exploração, fiscalizando e punindo os “urberizados” com avaliações e pontuações, não raro cobrando a pressa que sabe mortal para os motorizados.

Acredito, assim, que a questão mais adequada para analisar o tema não guarda relação direta sobre a importância inexorável de qualquer avanço tecnológicos na consolidação do processo histórico. A tecnologia foi, é e sempre será fundamental, imprescindível até… O que se faz relevante é saber quem é o seu proprietário, quem nela investe, a quem se destina e com que finalidade é utilizada. Quem eram os donos das caravelas? Quem investiu no vapor e na eletricidade? A que se destina as armas bélicas? Qual a finalidade real dos computadores?

Ao compreendermos que a quase totalidade da tecnologia é patenteada, propriedade privada do seu investidor, destinada a poucos e utilizada para o fortalecimento dos que se julgam no direito de ter a propriedade das coisas, da natureza e das pessoas, encontraremos uma luz no túnel das respostas. A humanidade já apontou caminhos que trilham por lógicas diversas, apostou na pessoa humana com razão de ser da política, falou a língua da solidariedade e pregou que somente através da ação se pode coibir a exploração. Somente a visão humanista do avanço tecnológico é que poderá alterar o seu uso excludente do poder econômico, político e social. Este desafio é mais importante do que o duelo entre o velho e o novo. Até porque, como também esclareceu Belchior no refrão seguinte da genial canção já mencionada, a humanidade não pode concluir, outra vez, que “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.

Artigo originalmente publicado em: https://congressoemfoco.uol.com.br/

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