No dia 26 de junho comemora-se o Dia internacional de Apoio às vítimas de Tortura, que é uma data instituída pela Organização das Nações Unidas desde 1997 porque neste dia foi assinada a Convenção contra a Tortura, em 1987, pelos Estados que integram a ONU. A condenação legal da tortura está presente em diversos Tratados, Convenções, Constituições pelo mundo afora, como aqui no Brasil, no Art. 5, inciso III, que prevê que ninguém será submetido à tortura nem tratamento degradante. Não faltam dispositivos jurídicos e, inclusive, possibilidades de julgamentos por tribunais internacionais sobre o crime de tortura, e inclusive o crime é imprescritível, pois legalmente o passar do tempo não o isenta, não sendo propriamente, portanto, um problema de natureza jurídica, mas social e político.
Na Roma antiga, no século VIII (A.C.) a tortura era autorizada contra escravizados, assim como na Grécia antiga também era utilizada como punição ou meio de obtenção de provas de estrangeiros, prisioneiros, escravizados. Posteriormente, na Idade Média foi adotada em larga escala esta prática por parte da Igreja Católica Apostólica Romana, mormente a partir do século XIII, implementada pela Inquisição, através do Tribunal do Santo Ofício, sendo que muitas técnicas de tortura impostas resistiram no tempo até os dias atuais.
Na seqüência, todos países que escravizaram se valeram de alguma forma de tortura no séculos seguintes, como a Bélgica no Congo, Espanha, Portugal e a França no Haiti, país que foi palco da primeira revolução de escravos vitoriosa (1791-1804), que tive a oportunidade de visitar em 2007 e ver muitos vestígios do passado de tortura escravocrata. No Brasil, de modo semelhante, pode-se dizer que a tortura foi oficializada durante 1550 a 1888, quando juridicamente abolida a escravidão, sendo que mesmo para os brancos (e livres) ela somente foi proibida oficialmente na Constituição de 1824. E sabe-se que, logo após a Proclamação da República, torturou-se muitos nordestinos combatentes em Canudos (1896/1897) e na Revolta da Chibata os líderes dos marinheiros foram barbaramente torturados (1910).
É igualmente sabido que a ditadura do Estado Novo, em 1937, esbanjou tortura, sobretudo contra comunistas e sindicalistas, sendo que, de igual modo, a ditadura de 1964 nos impôs um Estado de terror e tortura, cujo relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2014, registra 434 mortos ou desaparecidos, ao lado de muitos depoimentos e comprovação documental de tortura física e psicológica.
Após o fim do regime militar e a Constituição de 1988, a tortura por motivação explicitamente política recuou, mas seguiu nas delegacias e quartéis das Polícias Militares, viaturas, UPPs, contra em sua maioria negros e pobres, especialmente moradores de favelas e bairros populares, em todos os Estados. Muitas denúncias são também televisionadas, como aconteceu recentemente com um jovem negro em São Paulo, que uma câmera de celular flagrou sendo torturado em plena luz do dia, em situação muito parecida ao ocorrido recentemente nos EUA com o cidadão Floyd. E em tantos casos de violência policial cotidiana contra negros e negras, que são marca do racismo estrutural e do genocídio que não o deixam respirar.
Fiz esta breve retrospectiva a fim de demonstrar tanto o quanto a tortura está enraizada nas diversas estruturas de poder impostas ao povo ao longo dos séculos, com ênfase para os regimes escravocratas, como adentrar no tema da anistia enquanto o reconhecimento conquistado e obtido perante o Estado acerca de todos os sofrimentos impostos aos que lutaram contra tais regimes, pois o tema da anistia não é brasileiro, americano ou europeu, mas universal e tem a ver com a luta igualmente universal de direitos humanos, especialmente no que diz respeito aos perseguidos políticos, presos, torturados e muitas vezes mortos ou desaparecidos, sendo este o seu conceito fundamental e principal sentido histórico.
Absurda anulação de anistias
Sobre a anistia política, que também é um tema que também possui raízes históricas, o Brasil, desde a ascensão de Temer, em 2016 vive uma fase de inconteste retrocesso no direito de anistia política, o que se traduz nas revogações de anistias concedidas há mais de 15 anos, como o citado caso dos ex-cabos da Aeronáutica, mas que não são os únicos, pois desde 2017 vem sendo anuladas, ilegalmente, anistias concedidas aos operários do ABC paulista, São José dos Campos, servidores públicos, anistias de grevistas que foram concedidas com base na Lei 10. 559/2002 e o arts. 8 e 9, ambos do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, cuja legitimidade e legalidade vem sendo ignoradas pela atual direção da Comissão Nacional de Anistia, apesar de já decorrido o prazo legal para revisões administrativas, conforme o que dispõe o art. 54 da 9.784/1999 que trata do funcionamento dos processos administrativos.
Não se desconhece que o STF possui julgamento que mandou revisar, por exemplo, anistias concedidas a alguns grupos de anistiados, mas a verdade é que não foi em relação a todos os casos, e também não determinou expressamente que a Senhora Ministra sumariamente anulasse tais anistias, em plena Pandemia do covid-19, sem direito de prévia defesa e colocando, portanto, em risco a sobrevivência destes anistiados, todos idosos com mais de 60 anos e, portanto, parte destes inclusos em grupo de risco por idade e doenças.
Em verdade, foi mais um ato de violação de direitos humanos por parte de quem deveria defendê-los! A cassação das anistias dos ex-cabos da Aeronáutica, além de se somar a outras revogações arbitrárias, faz parte de um processo de tentativa de aniquilamento da anistia política no Brasil, que se reporta a militarização da comissão nacional de anistia, tentativa de mudança de legislação em desfavor de anistiados e anistiandos, revisão de valores de pensões, cassação de patentes e igualmente uma propaganda ideológica do Governo Federal contra o próprio instituto da Anistia Política.
Devo dizer que tanto em relação a este crime hediondo e cruel de tortura, como as medidas deste Governo que vilipendiam o direito universal e constitucional de Anistia Política, são parte da mesma política geral de combate e tentativa de destruição dos direitos humanos no Brasil, perpetrada por Bolsonaro e sua fração civil-militar-empresarial que habita os espaços de poder federal, a começar pela Presidência da República, ladeado por generais, e que negar anistias, portanto, é o mesmo que negar a história, para, com isto, impor ao povo ainda mais desrespeitos aos direitos humanos, como já acontece com negros e pobres, enquanto política de Estado. E por isto mesmo, em defesa destes direitos é preciso dizer: Fora Bolsonaro-Mourão.
Aderson Bussinger, advogado, morador de Niterói (RJ), Aderson é conselheiro seccional da OAB-RJ e membro efetivo da CDH, além de diretor de documentação e pesquisa e anistiado político.
Artigo originalmente publicado em: https://esquerdaonline.com.br/