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O desafio da Defensoria Pública: o “Caso Magalu” e o racismo estrutural
Cezar Britto
24 de outubro de 2020

Tenho na Defensoria Pública uma das maiores ideias e conquistas realizadas no conservador mundo do Direito. Segundo a voz autorizada dos constituintes e das constituintes, a “Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV, do art. 5º, desta Constituição Federal” (art. 134).

Por meio da Constituição Federal, o Brasil – reconhecendo que o acesso à Justiça é um direito fundamental da cidadania – rejeitou a tese de que a defesa dos grupos vulnerabilizados deveria ser exercida de forma voluntária por escritórios de advocacia (advocacia pro bono) ou associações civis comprometidas com a inclusão social.

Não obstante, as Defensorias Públicas permanecerem desestruturadas e não dignamente remuneradas em várias unidades federativas, porém elas seguem cumprido a missão delegada pela Constituição Federal. A Defensoria Pública – hibernada por vários e incontáveis anos – é a principal responsável pelo iniciar da quebra do monopólio do acesso à Justiça apenas pelos nascidos em berços econômicos e juridicamente esplêndidos.

Com as Defensorias Públicas os temas inerentes aos grupos secularmente excluídos e às pessoas vulnerabilizadas passaram a frequentar os corredores jurídicos, conquistando os mais diversos espaços do Poder Judiciário, inclusive os conflitos que tramitam nos Tribunais Superiores. Em resumo, embora ainda não suficientemente compreendidas pelos governantes de plantão, as Defensorias Públicas se transformaram nas mais abalizadas vozes que desafiam, diariamente, a carcomida concepção de que os grupos vulnerabilizados não merecem a defesa competente ou a proteção do Estado.

Daí a correta estranheza da sociedade quando um integrante da Defensoria Pública da União ingressou com ação judicial contra a política afirmativa praticada por uma empresa privada. Na sua equivocada e inconstitucional ótica, a Magalu deveria ser exemplar e economicamente punida por querer corrigir a sua desigual política de recursos humanos justamente por incluir a questão racial como elemento de contratação.

Deve ter “acreditado no mito de que o Brasil é o país símbolo do paraíso racial”, sendo inverídicas as estatísticas que apontam para a grave desigualdade étnica do mercado de trabalho, da dificuldade de acesso ao emprego, da quase inexistente presença de chefias e lideranças, da visível ausência de remuneração isonômica e das vítimas das mais diversas formas de assédio laboral, ainda mais quando o critério de gênero tem como parâmetro a mulher negra.

Ao negar o racismo estrutural que chacina, assassina, prende, violenta, exclui, descrimina social e economicamente, isola, deseduca, recusa direitos, rasga biografias, constrange e castra o acesso a bens públicos às comunidades afrodescendentes, esse personagem passageiro da Defensoria Pública da União prestou um grande desserviço à sua instituição e aos grupos vulnerabilizados que um dia jurou defender. Mais ainda, despertou nos racistas brasileiros o ódio que vem se espalhando nos gabinetes oficiais, maculando espaços religiosos não espiritualizados, contaminando as ambiências sociais e gerando violências, medos e mais ódios. E, por fim, estimulou o nascimento e o crescimento de agrupamentos segregacionistas que querem a revogação do próprio papel do Estado como fomentador de políticas socialmente inclusivas e constitucionalmente afirmativas.

O “Caso Magalu” traz novos desafios para a Defensoria Pública que se espalha no vasto, patrimonialista e desigual território brasileiro. Afinal, como instituição de Estado que é – essencial à função jurisdicional e ao regime democrático – não pode a Defensoria Pública funcionar como algoz dos direitos humanos ou agir como cruel destruidora dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, devidos aos necessitados. E para a Defensoria Pública continuar sendo admirada, copiada e estudada em várias partes do mundo, não pode aceitar como natural o desvirtuamento da razão de ser da sua própria existência enquanto órgão criado para desempenhar a relevante tarefa de defender os grupos vulnerabilizados e as pessoas excluídas de direitos.

As Defensorias Públicas têm de rejeitar toda e qualquer ação, ainda que de origem esdrúxula e interna, que comprometa a sua missão constitucional. Como certa vez ensinou o mestre José Martins Catharino: “órgão sem função é um traste, estático, sem serventia, o que contraria sua própria destinação dinâmica. Órgão sem meios ou instrumentos teleológicos está fadado à atrofia e ao desaparecimento”.

Nesta histórica quadra do tempo, o maior desafio da Defensoria Pública da União é o de contribuir para construção do legado igualitário e inclusivo pretendido pela Constituição Federal de 1988 – nossa Carta Cidadã – e, superando os obstáculos corporativos, retirar do mundo jurídico a ação judicial que ataca, agride, zomba e desprotege o grupo vulnerabilizado que sente a dor, as consequências e o peso de se viver em um país estruturalmente racista.


Artigo originalmente publicado em: https://congressoemfoco.uol.com.br/

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